terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Testando a evolução humana em laboratório

Testando a evolução humana em laboratório


A identificação de características celulares e moleculares que diferem os humanos de outros primatas é algo essencial para o entendimento básico da evolução da nossa própria espécie. Com as melhorias da tecnologia de sequenciamento de DNA, descobrimos que somos muito parecidos geneticamente com nossos primos evolutivos, incluindo os chimpanzés, os bonobos e os gorilas. Por outro lado, análises anatômicas e comportamentais mostram o quanto diferentes somos dos outros primatas.

Esse cenário nos mostra que as pequenas variações genéticas entre essas espécies são, portanto,  bem significativas. Cientistas do mundo todo especulam sobre as consequências dessas variações para a fisiologia humana: neurônios humanos devem gastar mais energia, músculos dos chimpanzés são mais fortes, e por aí vai. Porém, até hoje era impossível desenhar experimentos controlados a nível molecular e celular sobre a evolução humana, provando causalidade entre as diferenças genéticas e os fenótipos celulares em células vivas de chimpanzés e bonobos. Parte dessa dificuldade vem das restrições de trabalho com material biológico de primatas, principalmente quando estão ameaçados de extinção.

Quando criança, lembro que gastava horas pensando em questões filosofais como “de onde viemos?” e “quem somos?”. Esse tipo de questionamento sempre me deixou com vontade de estudar evolução humana, principalmente sob a ótica da neurociência. Porém, nunca soube direito como poderia contribuir para essas questões fundamentais até que decidi aplicar técnicas de reprogramação celular para gerar células pluripotentes de outros primatas. Com isso, poderia  obter material biológico de estágios iniciais do desenvolvimento e comparar as espécies. Células da pele de chimpanzés e bonobos foram obtidas do zoológico de San Diego e reprogramadas para um estágio embrionário. O estudo que descrevo abaixo é fruto de uma cooperação internacional e culminou com um trabalho publicado hoje na revista cientifica Nature (Marchetto et al, Nature 2013).

Nesse trabalho, procuramos responder uma questão essencial sobre a origem do homem moderno: por que temos tão pouca variabilidade genética quando comparados aos chimpanzés ou outros primatas? Eu explico melhor. Análises de sequenciamento do genoma humano revelaram que temos pouquíssima diversidade na população. Somos muito parecidos entre nós e o conceito de raça entre os humanos modernos pode ser considerado apenas uma curiosidade geográfica. Do ponto de vista genético, somos todos irmãos. Isso contrasta muito com chimpanzés, por exemplo. Uma simples colônia de chimpanzés na África tem mais variabilidade genética do que a humanidade inteira!

Uma teoria para explicar isso sugere que os humanos modernos passaram por um “gargalo evolucionário”, reduzindo dramaticamente a população humana. Consequentemente, reduzimos a variação genética também. Ou seja, somos todos muito similares uns aos outros porque fomos originados de uma população inicial muito pequena. Esse gargalo pode ter sido consequência de uma infecção viral, mudanças climáticas ou qualquer outro fator que fizesse com que apenas uma pequena porcentagem, com os mais adaptados, sobrevivesse e procriasse.

Essa teoria pode ser confirmada em nosso modelo, contrastando células-tronco induzidas de humanos, chimpanzés e bonobos. A variabilidade gerada pela atividade de elementos móveis no genoma (uma das ferramentas evolutivas para gerar diversidade genética) é significativamente menor em humanos quando comparada com os outros dois primatas. Análises de expressão gênica ajudaram a desvendar o porquê disso. Mecanismos moleculares responsáveis por manter a estabilidade do genoma são mais rigorosos em humanos. Seria como se as células-tronco embrionárias dos outros primatas tolerassem mais insultos na molécula de DNA.

Essa observação não serve apenas para confirmar uma teoria evolucionária antiga, mas também traz insights sobre os mecanismos moleculares envolvidos nesse fenômeno. Vou mais além, nosso dados fazem pensar: será que o fato de os humanos terem menos diversidade genética foi algo positivo pra humanidade moderna? Acho que sim, pelo menos por enquanto. Imagino que a dramática redução de diversidade dos nossos ancestrais nos aproximou empaticamente, favorecendo cooperação entre grupos. Humanos modernos são muito mais tendenciosos a trabalhar junto aos seus semelhantes. No momento após o gargalo, os humanos que restaram eram nada mais do que uma grande família. E ainda somos, o que induziria a cooperação entre nações. Grupos de chimpanzés, ao contrário, são extremamente hostis uns aos outros e não são necessariamente dispostos a trabalhar em conjunto. É uma especulação interessante.

De qualquer forma, nosso trabalho é pioneiro no sentido de criar uma nova ferramenta para estudos de evolução utilizando-se de células-tronco pluripotentes induzidas. Esse modelo já está sendo aplicado ao estudo do desenvolvimento do cérebro humano. Estamos começando a comparar neurônios e glia (células não-neuronais, pouco caracterizadas, mas que possuem funções importantes no cérebro) derivados de humanos e outras espécies, durante a maturação neural. O conhecimento vai além de um mero egocentrismo antropológico. Acredito que resultados desses estudos serão benéficos para doenças humanas, como autismo e esquizofrenia.

Esse trabalho conta com a participação de outros colegas brasileiros. Foi liderado pela Carol Marchetto (atualmente a brasileira mais influente internacionalmente quando o assunto é células-tronco) e com participação dos bioinformatas Apuã Paquola e Roberto Herai, ambos fazendo pós-doutoramento em San Diego. Pois é, um trabalho desse calibre tinha que ter uma participação criativa brasileira muito forte.


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