GUERRA DE CANUDOS ...E O SERTÃO VIROU UM MAR DE SANGUE - História
No centenário da fundação de Canudos por Antônio Conselheiro, a memória do massacre a ferro e fogo da cidade santa dos sertanejos baianos permanece viva como uma das mais cruéis e absurdas páginas da História do Brasil.
Quando Canudos caiu no dia 5 de outubro de 1897, o país respirou aliviado. Depois de pouco mais de um ano de combates, três expedições fracassadas e milhares de mortes, finalmente estava esmagado o movimento que, para as pessoas da época, representava a mais duradoura resistência monarquista à recém-nascida República brasileira. Chegava também ao fim a comoção que tomou conta das principais cidades brasileiras, em especial Rio e São Paulo. Pela primeira vez, a porção civilizada do país acompanhou pela imprensa o dia-a-dia de uma campanha, transmitido pelo telégrafo. Durante semanas, os despachos dos correspondentes de pelo menos doze jornais fascinavam e alarmavam o público com relatos sangrentos da ação de uma gente descrita como fanáticos primitivos, mestiços "miseráveis e supersticiosos" empenhados em puxar o Brasil de volta para o passado e o Império.
Cem anos depois da fundação da cidade santa de Antônio Conselheiro, tamanha apreensão parece uma trágica ironia. "É provável que Conselheiro nem soubesse o nome do presidente da República, Prudente de Morais", conta Walnice Galvão, professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, atualmente lecionando em Paris e autora do livro No calor da hora - A guerra de Canudos nos jornais, uma das primeiras obras a estudar o papel da imprensa no pânico criado em torno do movimento do sertão baiano. "Canudos foi um sonho de ascetismo religioso. Eles queriam se isolar do mundo e não alimentar revoluções políticas."
Antônio Vicente Mendes Maciel, o verdadeiro nome de Conselheiro, nasceu em Quixeramobim, Ceará, no dia 13 de março de 1830. Filho de um comerciante de secos e molhados, que, apesar do alcoolismo, queria um filho padre, ele teve uma boa educação: estudou Aritmética, Geografia, Português, Francês e Latim. O sonho do seminário jamais se realizaria. Com a morte do pai, aos 25 anos Antônio assumiu os negócios e as dívidas da família, além da responsabilidade sobre quatro irmãs solteiras. A falência foi inevitável e, durante anos, ele tentou de tudo para ganhar a vida. Foi professor de Português, Aritmética e Geometria, trabalhou em lojas, tentou abrir seu próprio comércio em pequenas localidades do interior do Ceará e chegou mesmo a atuar como requerente - uma espécie de advogado sem diploma - na cidade de Ipu.
Na época, já era casado com sua prima Brasilina Laurentina de Lima, com quem aparentemente teve dois filhos. Na cidade cearense de Tamboril, a mulher acabou fugindo com um soldado chamado João de Melo. Era o ano de 1860, e pouco depois Antônio Maciel deixou os filhos com a mãe de Brasilina e começou a viajar pelo Ceará. No início foi uma espécie de caixeiro-viajante, até que, em 1871, já convertido, começou a vagar pregando pela região sertaneja dos Estados do Ceará, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, onde surgiu pela primeira vez em 1874.
O Conselheiro que a Bahia conheceu já não era mais um homem ligado às coisas do mundo: seu único interesse eram as obras para apoiar a Igreja. Principalmente organizar a reforma das capelas e cemitérios das pauperizadas cidades pelas quais passava no sertão ou construir cisternas em lugarejos esquecidos pela chuva, obras extremamente caras à população do Nordeste.
A persistente religiosidade dos nordestinos era impressionante, se for levada em conta a situação de abandono dos rebanhos religiosos. Em 1887, das 190 paróquias existentes no Estado da Bahia, 124 não tinham padres permanentes. Para fazer frente à falta de pastores, a Arquidiocese de Salvador recorria aos chamados estrangeiros, missionários jesuítas, franciscanos ou capuchinhos vindos da Europa, que nada conheciam da realidade sertaneja e muitos mal falando o português. O chefe da primeira missão oficialmente enviada a Canudos - cidade fundada por Conselheiro em 1893 - pelas autoridades eclesiásticas baianas, por exemplo, foi um capuchinho italiano, João Evangelista de Monte Marciano.
Evangelista permaneceu em Canudos durante uma semana em 1895 e sua tarefa era convencer Conselheiro a dispersar o povoado. Um fiasco. Bem-recebido, ele oficiou missas, casamentos e batizou mais de uma centena de fiéis - havia quase um ano Canudos não recebia um sacerdote, pois o padre que fazia visitas periódicas a sua população foi proibido pela Igreja de entrar lá. Assim que os seguidores de Conselheiro perceberam as reais intenções de João Evangelista, porém, ele foi expulso de imediato. Em seu relatório, o capuchinho acabou selando a sorte de Canudos: ela era um perigo, estava armada até os dentes e precisava ser contida. Nele também constam as palavras, atribuídas por Evangelista a Conselheiro, que ligaram o líder canudense em definitivo à questão republicana. "No tempo da monarquia deixei-me prender, porque reconhecia o governo. Hoje não, porque não reconheço a República", teria lhe confessado Conselheiro.
Naqueles anos, encontrar monarquistas no sertão não era difícil. A miséria crônica daquela terra esquecida não era responsabilidade da República. Condenado a viver à margem da riqueza das regiões de lavoura de exportação, como o açúcar, o tabaco ou o cacau, o sertanejo aprendeu a se conformar com a sorte, numa economia de subsistência onde apenas 1% da população rural tinha algum tipo de propriedade, na maioria coronéis empobrecidos, mas ainda assim poderosos. Secas intermitentes aniquilavam cidades inteiras. Na de 1877 a 1880, só em Fortaleza se perderam 64 000 vidas. Entre 1888 e 1892 - quando nasceu a República - a estiagem voltou a dizimar a região. Em algumas localidades, a expectativa média de vida era de 27 anos.
O novo regime só agravou a situação. Ao transferir os impostos de exportação do governo central para os estaduais, a Constituição de 1891 jogou na miséria Estados mais decadentes, que passaram a aumentar as taxas internas, pressionando ainda mais os pobres. Além disso, religiosos ortodoxos como Conselheiro jamais aceitaram a separação entre Estado e Igreja realizada pela República, que instituiu o casamento civil, por exemplo. Ele morreu sem reconhecer a autoridade de um cartório para unir vidas em matrimônio.
Quando decidiu fundar Belo Monte, em 1893 - Canudos era o nome da fazenda abandonada onde se instalou -, Conselheiro estava acuado por causa de um pronunciamento anti-republicano em Bom Conselho. Seus sermões não só falavam da salvação das almas, mas também de problemas reais como a fome, a miséria, a opressão política. Perseguido por uma tropa de cerca de trinta praças, Conselheiro e seus seguidores - cerca de 200 - enfrentaram os policiais na localidade de Masseté, entre Cumbe e Tucano, com baixas de ambos os lados. O incidente, porém, não teve maiores conseqüências.
O líder carismático também já não tinha o apoio da Igreja fazia muitos anos, embora jamais acusado de heresia: era um católico fervoroso e ortodoxo, que defendia a instituição. "Ele jamais rezou uma missa ou batizou alguém, e o próprio João Evangelista foi obrigado a reconhecer que Antônio Conselheiro nunca tentou usurpar as atribuições de um padre ou monge", conta Marco Antonio Villa, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, e autor do livro Canudos - O campo em chamas. Se para a Arquidiocese de Salvador ele não passava de um místico perigoso, para os sertanejos, no entanto, ele era a esperança de uma vida comunitária independente: pobres, como sempre foram, mas livres dos potentados e impostos, que Canudos sempre se recusou a pagar. A cidade de Antônio Conselheiro chegou a ter uma população de 15 000 a 25 000, só perdendo na Bahia para Salvador, que em 1897 contava 180 000 habitantes. E transformou-se num fenômeno único no sertão, acostumado às grandes peregrinações religiosas: pela primeira vez, os fiéis iam mas não voltavam. De onde saía o alimento para tantas bocas é um mistério, já que a pequena agricultura que praticavam não supriria tanta gente e as doações que Conselheiro recebia teriam que ser muitas para manter a comunidade.
Em outubro de 1896, porém, uma provocação daria início às hostilidades contra Canudos. Antônio Conselheiro havia encomendado e pago em Juazeiro uma partida de madeira para a construção da nova Igreja Nova da cidade. Por determinação do juiz de Juazeiro, Arlindo Leoni, o carregamento foi detido na cidade. Leoni, aliás, era um velho desafeto de Conselheiro. "Há versões de que a inimizade surgiu porque Conselheiro defendeu um homem que surrou a amante de Leoni quando ele era juiz em Bom Conselho", diz Villa.
Seja qual for o motivo, os canudenses decidiram pegar a madeira à força, se necessário, e imediatamente o juiz comunicou ao governo baiano que Juazeiro estava sob ameaça de um ataque conselheirista. Em socorro da cidade, foi enviada pelo comando do 3.º Distrito Militar, de Salvador, uma força de 107 homens, chefiada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira. Foi a chamada primeira expedição da Guerra de Canudos, que teve um fim vexaminoso: entre Juazeiro e o reduto de Conselheiro, as tropas pararam para descansar em Uauá e não perceberam que, à noite, a população fugiu da cidade. Pouco depois, foram atacados pelos canudenses e debandaram, deixando para trás armamentos e munição. Foi a primeira "vitória improdutiva" da campanha - era assim que o Exército se referia aos reveses no sertão.
Em dezembro, organizou-se uma segunda expedição, dessa vez comandada por um major, Febrônio de Brito, à frente de 543 praças, 14 oficiais e 3 médicos e munida com três canhões Krupp e três metralhadoras. Seu destino não foi diferente. Em três escaramuças, Febrônio foi batido pelas táticas guerrilheiras dos "jagunços" e obrigado a se retirar, humilhado, em 20 de janeiro. A essa altura, Canudos era um problema nacional e entra em cena o coronel Moreira César, que vem do Rio para aplacar o levante. Considerado herdeiro de Floriano Peixoto e até provável candidato à Presidência, Moreira foi à Bahia levando o cacife da fama de violência e degolas na repressão à Revolução Federalista gaúcha (1893-1895).
Com 1 300 homens e quatro canhões Krupp, em fevereiro de 1897 ele iniciou o ataque a partir de Queimadas, ao sul de Canudos. "Moreira estava tão seguro da vitória, que desprezou os preceitos básicos do manual de guerra escrito por ele e adotado nos cursos de formação militar", lembra Marco Antônio Villa. Além disso, era epilético e teve dois ataques durante a campanha. Num erro fatal e infantil, Moreira determinou que a artilharia se estabelecesse no morro acima de Canudos e mandou os soldados invadirem a cidade: acantonados no arraial, os conselheiristas receberam o exército à bala, sob o olhar impotente dos canhoneiros, que não podiam disparar para não matar os companheiros. Moreira César pagou com a vida seus absurdos descuidos e a repercussão da nova "vitória improdutiva" abalou o Rio e São Paulo. Em meio a distúrbios de rua selvagens, lideranças monarquistas foram perseguidas: no Rio, o coronel Gentil de Castro é assassinado e jornais como O Comércio de São Paulo e o carioca Gazeta da Tarde, monarquistas, são invadidos.
Sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães, começa então a quarta e última expedição contra Canudos. Dessa vez, com toda precaução. O próprio ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt - que acabaria morto no atentado contra o presidente Prudente de Morais durante as comemorações da vitória no Rio, em novembro -, visitou a região. Mais de 10 000 homens de dez Estados, três generais e dezenas de oficiais envolveram lentamente Canudos num cerco mortal, que encontrou resistência incansável. Conselheiro não viu o fim de seu sonho: ele morreu duas semanas antes, no dia 22 de setembro, provavelmente vítima de disenteria. Seus seguidores ainda lutariam até o dia 5 de outubro, quando o último foco de resistência, depois de meses de combates, caiu em meio a uma cidade já completamente em ruínas, depois queimada para que não ficasse pedra sobre pedra. Destruída pelo fogo, hoje a Canudos de Conselheiro repousa sob as águas do açude de Cocorobó.
A redescoberta do sertanejo
Euclides da Cunha assistiu somente às três semanas finais de Canudos como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Mas foi o suficiente para alimentar o talento de um personagem cuja vida foi tão trágica quanto a saga que originou Os sertões, a obra-prima de 1902 que lhe valeu a imortalidade na estante dos clássicos brasileiros. Nascido em Cantagalo, no Rio de Janeiro, em 1866, Euclides teve uma vida turbulenta, que chegou ao fim aos 43 anos num dos maiores escândalos do início do século: um duelo com Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Ana.
Em 1897, no entanto, quando desembarcou no sertão, o jovem engenheiro e ex-militar, positivista e republicano convicto, estava certo de que encontraria apenas uma manifestação da brutalidade dos miscigenados caboclos da região. Pelo menos, assim rezava a cartilha intelectual de quem conhecia e apreciava teóricos racistas europeus da pureza racial e da superioridade dos po-vos. Os fatos se encarregaram de mudar seu ponto de vista, ao perceber que os verdadeiros selvagens trajavam farda.
Como correspondente de jornal, Euclides nada pôde denunciar: o exército manteve sob censura os jornalistas. "O impacto dOs sertões foi revelar não só a realidade humana de uma terra esquecida, como a barbárie dos militares: degola dos prisioneiros, tortura, prostituição e o comércio de crianças", conta Roberto Ventura, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Autor do livro Estilo tropical, ele agora está escrevendo a romanesca biografia de Euclides.
O ´fanatismo´ com sotaque sulista
Assim como Antônio Conselheiro não foi o único pregador a atuar no sertão - Padre Cícero era contemporâneo dele -, o Nordeste também não foi o palco exclusivo dos messiânicos, sempre tachados como "fanáticos". No Sul, alemães e brasileiros viveram radicaliza-- ções religiosas que deixaram marcas na história:
Muckers - Movimento alemão liderado pelo casal de imigrantes anabatistas Jacobina e João Jorge Maurer. Instalados em Ferrabrás, próximo a São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, eles se diziam eleitos para fundar um reino santo. Em 1871, com a construção da ferrovia entre Porto Alegre e São Leopoldo, saíram do isolamento e começaram a ter problemas com fazendeiros vizinhos. Dois anos depois, foram atacados e derrotaram uma força militar, mas acabaram sucumbindo a uma nova expedição. Presos, foram anistiados em 1883 e voltaram a Ferrabrás, onde as lutas recomeçaram, até que, em 1898, terminaram quase todos mortos.
Contestado - Movimento liderado pelo visionário monarquista Miguel Lucena Boaventura, que se denominava José Maria em homenagem a um antigo pregador da região. Hostilizado pela polícia de Taquaraçu (SC), José Maria fugiu com os seguidores para Palmas (PR). Na época, havia um litígio pela posse da região entre os dois Estados - daí o nome Contestado - e o governo paranaense considerou a chegada deles como uma invasão catarinense. Atacados pela polícia, o líder morreu no combate. Mas, em 1913, um fazendeiro cuja neta tinha visões de José Maria reagrupou os fiéis, fundando a cidade de Santa Maria, perto de Taquaraçu. O crescimento da seita assustou as autoridades e, em 1914, começaram os combates, que se prolongariam até o fim de 1915, quando o movimento, que chegou a reunir 20 000 adeptos, foi aniquilado, com o uso, pela primeira vez no país, da aviação na guerra.
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