Os Bruzundangas - Parte 2 de 4 - Lima Barreto
Os Bruzundangas - Lima Barreto
Já lhes contei aqui como o doutor Felixhimino Ben Karpatoso, tido como grande
financista naquele país, se saiu quando se tratou de resolver, grandes dificuldades financeiras da nação.
Pois bem: esse senhor não é o único exemplo da singular capacidade mental dos
homens públicos da Bruzundanga.
Outros muitos eu poderia citar. Há lá um que, depois de umas exibições vaidosas de
retratos nos jornais e cousas equivalentes, se casou rico e deu para ser católico praticante.
Encontrou o caminho de Damasco que é ainda uma cidade opulenta.
Entretanto, eu quando freqüentei a Universidade da Bruzundanga, o conheci como
adepto do positivismo do rito do nosso Teixeira Mendes. Quis meter-se na política, fugiu do
positivismo e, antes de dez anos, ei-lo de balandrau e vara a acompanhar procissões.
Depois da sua conversão, foi eleito definidor, fabriqueiro, escrivão de várias
irmandades e ordens terceiras.
Aliás, na Bruzundanga, não há sujeito ateu ou materialista em regra que, ao se casar
com mulher rica, não se faça instantaneamente católico apostólico romano. Assim fez esse meu
antigo colega.
Esse homem, ou antes este rapaz, que tão rapidamente se passou de uma idéia
religiosa para a outra, esse rapaz cuja insinceridade é evidente, é ajudado em todas as suas
pretensões, veleidades, desejos, pelos bispos, frades, padres e irmãs de caridade.
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As irmãs de caridade gozam, lá na Bruzundanga, de uma, influência poderosa. Não
quero negar que, como enfermeiras de hospitais, elas prestem serviços humanitários dignos de
todo o nosso respeito; mas não são essas que os cínicos ambicioaos da Bruzundanga cortejam.
Eles cortejam aquelas que dirigem colégios de meninas ricas. Casando-se com uma destas,
obtêm eles a influência das colegas, casadas também com grandes figurões, para arranjarem
posições e lugares rendosos.
Toda a gente sabe como o pessoal eclesiástico consegue manter a influência sobre os
seus discípulos, mesmo depois de terminarem os seus cursos. Anatole France, em L'Église et lu
République, mostrou isso muito bem. Os padres, freiras, irmãs de caridade não abandonam os
seus alunos absolutamente. Mantêm sociedades, recepções, etc., para os seus antigos
educandos; seguem-lhes a vida de toda a forma, no casamento, nas carreiras, nos seus lutos,
etc.
De tal froma fazem isto que constituem uma espécie de maçonaria a influir no
espírito dos homens, através das mulheres que eles esposam.
E os malandros que sabem dessa teia formada acima dos néscios, dos sinceros e dos
honestas de pensamento, tratam de cavar um dote e uma menina das irmãs, o que vem a ser
uma e única cousa.
Disse-nos um velho que conheceu escravos na Bruzundanga que foram elas, as irmãs
dos colégios ricos, as mais tenazes inimigas da abolição da escravidão. Dominando as filhas e
mulheres dos deputados, senadores, ministros, dominavam de fato os deputados, os senadores
e os ministros. Ce que femme veut...
Na Bruzundanga, onde os casamentos desastrosos abundam como em toda a parte,
não é lei o divórcio por causa dessa influência hipócrita e tola, provinda dos ricos colégios de
religiosos, onde se ensina a papaguear o francês e acompanhar a missa.
Esta dissertação não foi à toa, em se tratando de política e políticos da Bruzundanga,
porque estes últimos são em geral casados com moças educadas pelas religiosas e estas fazem a
política do país.
Com esse apoio forte, apoio que resiste às revoluções, às mudanças de regímen, eles
tratam, no poder, não de atender as necessidades da população, não de lhes resolver os
problemas vitais, mas de enriquecerem e firmarem a situação dos seus descendentes e
colaterais.
Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando
cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os
seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República.
No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a
população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis,
incapazes de dirigir a cousa mas fácil desta vida.
Vive sugada; esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que, na sua capital,
algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos,
subsídios, duplicados e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem,
empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres.
Um povo desses nunca fará um haro, para obter terras.
A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece. Não
devemos estar a perder o latim com semelhante gente; eu, porém, que me propus a estudar os
seus usos e costumes, tenho que ir até ao fim.
Não desanimarei e ainda mais uma vez lembro, para bem esclarecer o que fica dito
acima, que o grande Bossuet disse que a política tinha por fim fazer a felicidade dos povos e a
vida cômoda.
A Águia de Meaux, creio eu, não afirmou isso somente para edificação de algumas
beatas...
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V
As riquezas da Bruzundanga
QUANDO abrimos qualquer compêndio de geografia da Bruzundanga; quando se lê
qualquer poema patriótico desse pais, ficamos com a convicção de que essa nação é a mais rica
da terra.
"A Bruzundanga, diz um livro do grande sábio Volkate Ben Volkate, possui nas
entranhas do seu solo todos os minerais da terra.
"A província das Jazidas tem ouro, diamantes; a dos Bois, carvão de pedra e turfa; a
dos Cocos, diamantes, ouro, mármore, safiras, esmeraldas; a dos Bambus, cobre, estanho e
ferro. No reino mineral, nada pede o nosso país aos outros. Assim também no vegetal, em que
é sobremodo rica a nossa maravilhosa terra.
"A borracha, continua ele, pode ser extraída de várias árvores que crescem na nossa
opulenta nação; o algodoeiro é quase nativo; o cacau pode ser colhido duas vezes por ano; a
cana-de-açúcar nasce espontaneamente; o café, que é a sua principal riqueza, dá quase sem
cuidado algum e assim todas as plantas úteis nascem na nossa Bruzundanga com facilidade e
rapidez, proporcionando ao estrangeiro a sensação de que ela é o verdadeiro paraíso terrestre".
Nesse tom, todos os escritores, tanto os mais calmos e independentes como os de
encomenda, cantam a formosa terra da Bruzundanga.
Os seus acidentes naturais, as suas montanhas, os seus rios, os seus portos são
também assim decantados. Os seus rios são os mais longos e profundos do mundo; os seus
portos, os mais fáceis ao acesso de grandes navios e os mais abrigados, etc., etc.
Entretanto, quem examinar com calma esse ditirambo e o confrontar com a realidade
dos fatos há de achar estranho tanto entusiasmo.
A Bruzundanga tem carvão, mas não queima o seu nas fornalhas de suas
locomotivas. Compra-o à Inglaterra, que o vende por bom preço. Quando se pergunta aos
sábios do país porque isto se dá, eles fazem um relatório deste tamanho e nada dizem. Falam
em calorias, em teor de enxofre, em escórias, em grelhas, em fornalhas, em carvão americano,
em briquettes, em camadas e nada explicam de todo. Os do povo, porém, concluem logo que o
tal carvão de pedra da Bruzundanga não serve para fornalhas, mas, com certeza, pode ser
aproveitado como material de construção, por ser de pedra.
O que se dá,com o carvão, dá-se com as outras riquezas da Bruzundanga. Elas
existem, mas ninguém as conhece. O ouro, por exemplo, é tido como uma das fortunas da
Bruzundanga, mas lá não corre uma moeda desse metal. Mesmo, nas montras dos cambistas,
as que vemos são estrangeiras. Podem ser turcas, abexins, chinas, gregas, mas do pais não há
nenhuma. Contudo, todos afirmam que o país é a pátria do ouro.
O povo da Bruzundanga é doce e crente, mais supersticioso do que crente, e entre as
suas superstições está esta do ouro. Ele nunca o viu, ele nunca sentiu o seu brilho fascinador;
mas todo o bruzundanguense está certo de que possui no seu quintal um filão de ouro.
Com o café dá-se uma cousa interessante. O café é tido como uma das maiores
riquezas do país; entretanto é uma das maiores pobrezas. Sabem por quê? Porque o café é o
maior "mordedor" das finanças da Bruzundanga.
Eu me explico. O café, ou antes, a cultura do café é a base da oligarquia política que
domina a nação. A sua árvore é cultivada em grandes latifúndios pertencentes a essa gente,
que, em geral, mal os conhece, deixando-os entregues a administradores, senhores, nessas
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vastas terras, de baraço e cutelo, distribuindo soberanamente justiça, só não cunhando moeda,
porque, desde séculos, tal cousa é privilégio do Rei.
Os proprietários dos latifúndios vivem nas cidades, gastando à larga, levando vida
de nababos e com fumaças de aristocratas. Quando o café não lhes dá o bastante para as suas
imponências e as da família, começam a clamar que o país vai à garra; que é preciso salvar a
lavoura; que o café é a base da vida econômica do país; e -- zás -- arranjam meios e modos do
governo central decretar um empréstimo de milhões para valorizar o produto.
Curiosos economistas que pretendem elevar o valor de uma mercadoria cuja oferta
excede às necessidades da procura. Mais sábios, parece, são os donos de armarinho que dizem
vender barato para vender muito...
Arranjando o empréstimo, está a coisa acabada. Eles, os oligarcas, nadam em ouro
durante cinco anos, todo o país paga os juros e o povo fica mais escorchado de impostos e
vexações fiscais. Passam-se os anos, o café não dá o bastante para o luxo dos doges, dogaresas
e dogarinhas da baga rubra, e logo eles tratam de arranjar uma nova valorização.
A manobra da "valorização" consiste em fazer que o governo compre o café por um
preço que seja vantajoso aos interessados e o retenha em depósito; mas, acontece que os
interessados são, em geral, governo ou parentes dele, de modo que os interessados fixam para
eles mesmos o preço da venda, preço que lhes dê fartos lucros, sem se incomodar que "o café"
venha a ser, senão a pobreza, ao menos a fonte da pobreza da Bruzundanga, com os tais
empréstimos para as valorizações.
Além disto, o café esgota as terras, torna-as maninhas, de modo que regiões do país,
que foram opulentas pela sua cultura, em menos de meio século ficaram estéreis e sáfaras.
Sobre a cultura do café nas terras da Bruzundanga, eu podia muito dizer e podia
também muito epilogar. Não me despeço do assunto totalmente; talvez, mais tarde volte a ele.
Há matéria para escrever sobre ela, muito; dá tanta assunto quanto os matadouros de Chicago.
O cultivo da cana e o fabrico de aguardente e açúcar são matéria de que me abstenho
de tratar. Abstenho-me porque lá diz o ditado que, com teu amo, não jogues as peras. Le
sage...
A riqueza mais engraçada da Bruzundanga é a borracha. De fato, a árvore da
borracha é nativa e abundante no país. Ela cresce em terras que, se não são alagadiças, são
doentias e infestadas de febres e outras endemias. A extração do látex é uma verdadeira
batalha em que são ceifadas inúmeras vidas. É cara, portanto. Os ingleses levaram sementes e
plantaram a árvore da borracha nas suas colônias, em melhores condições que as espontâneas
da Bruzundanga. Pacientemente, esperaram que as árvores crescessem; enquanto isto, os
estadistas da Bruzundanga taxavam a mais não poder o produto.
Durante anos, essa taxa fez a delícia da província dos Rios. Palácios foram
construídos, teatros, hipódromos, etc.
Das margens do seu rio principal, surgiram cidades maravilhosas e os seus magnatas
faziam viagens à Europa em iates ricos. As cocottes caras infestavam aa ruas da cidade. O
Eldorado...
Veio, porém, a borracha dos ingleses e tudo foi por água abaixo, porque o preço de
venda da da Bruzundanga mal dava para pagar os impostos. A riqueza fez-se pobreza...
A província deixou de pagar as dívidas e houve desembargadores dela a mendigar
pelas ruas, por não receberem os vencimentos desde mais de dous anos.
Eis como são as riquezas do país da Bruzunganda.
VI
O ensino na Bruzundanga
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Já vos falei na nobreza doutoral desse país; é lógico, portanto, que vos fale do ensino
que é ministrado nas suas escolas, donde se origina essa nobreza. Há diversas espécies de
escolas mantidas pelo governo geral, pelos governos provinciais e por particulares. Estas
últimas são chamadas livres e as outras oficiais, mas todas elas são equiparadas entre si e os
seus diplomas se equivalem. Os meninos ou rapazes, que se destinam a elas, não têm medo
absolutamente das dificuldades que o curso de qualquer delas possa apresentar. Do que eles
têm medo, é dos exames preliminares. De forma que os filhos dos poderosos fazem os pais
desdobrar bancas de exames, pôr em certas mesas pessoas suas, conseguindo aprovar os
pequenos em aritmética sem que ao menos saibam somar frações, outros em francês sem que
possam traduzir o mais fácil autor. Com tais manobras, conseguem sair-se da alhada e lá vão,
cinco ou seis anos depois, ocupar gordas sinecuras com a sua importância de "doutor".
Há casos tão escandalosos que, só em contá-los, metem dó.
Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros diretores da
República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e
presunçosos do que quando para lá entraram. São esses tais que berram: "Sou formado! Está
falando com um homem formado!"
Ou senão quando alguém lhes diz:
-- "Fulano é inteligente, ilustrado...", acode o homenzinho logo:
-- É formado?
-- Não.
-- Ahn!
Raciocina ele muito bem. Em tal terra, quem não arranja um título como ele obteve o
seu, deve ser muito burro, naturalmente.
Há outros, espertos e menos poderosos, que empregam o seguinte truc. Sabem, por
exemplo, que, na província das Jazidas, os exames de matemática elementar são mais fáceis.
Que fazem eles? Inscrevem-se nos exames de lá, partem e voltam com as certidões de
aprovação.
Continuam eles nessas manobras durante o curso superior. Em tal Escola são mais
fáceis os exames de tais matérias. Lá vão eles para a tal escola, freqüentam o ano, decoram os
pontos, prestam ato e, logo aprovados, voltam correndo para a escola ou faculdade mais
famosa, a fim de receberem o grau. O ensino superior fascina todos na Bruzundanga. Os seus
títulos, como sabeis, dão tantos privilégios, tantas regalias, que pobres e ricos correm para ele.
Mas só são três espécies que suscitam esse entusiasmo: o de médico, o de advogado e o de
engenheiro.
Houve quem pensasse em torná-los mais caros, a fim de evitar a pletora de doutores.
Seria um erro, pois daria o monopólio aos ricos e afastaria as verdadeiras vocações. De resto, é
sabido que os lentes das escolas daquele país são todos relacionados, têm negócios com os
potentados financeiros e industriais do país e quase nunca lhes reprovam os filhos.
Extinguir-se as escolas seria um absurdo, pois seria entregar esse ensino a seitas
religiosas, que tomariam conta dele, mantendo-lhe o prestigio na opinião e na sociedade.
Apesar de não ser da Bruzundanga, eu me interesso muito por ela, pois lá passei uma
grande parte da minha meninice e mocidade.
Meditei muito sobre os seus problemas e creio que achei o remédio para esse mal que
é o seu ensino. Vou explicar-me sucintamente.
O Estado da Bruzundanga, de acordo com a sua carta constitucional, declararia livre
o exercício de qualquer profissão, extinguindo todo e qualquer privilégio de diploma.
Feito isso, declararia também extintas as atuais faculdades e escolas que ele mantém.
Substituiria o atual ensino seriado, reminiscência da Idade Média, onde, no trivium ,
se misturava a gramática com a dialética e, no quadrivium, a astronomia e a geometria com a
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música, pelo ensino isolado de matérias, professadas pelos atuais lentes, com os seus
preparadores e laboratórios.
Quem quisesse estudar medicina, freqüentaria as cadeiras necessárias à especialidade
a que se destinasse, evitando as disciplinas que julgasse inúteis.
Aquele que tivesse vocação para engenheiro de estrada de ferro, não precisava estar
perdendo tempo estudando hidráulica. Freqüentaria tão-somente as cadeiras de que precisasse,
tanto mais que há engenheiros que precisam saber disciplinas que até bem pouco só se exigiam
dos médicos, tais como os sanitários; médicos -- os higienistas -- que têm de atender a dados
de construção, etc.; e advogados a estudos de medicina legal.
Cada qual organizaria o programa do seu curso, de acordo com a especialidade da
profissão liberal que quisesse exercer, com toda a honestidade e sem as escoras de privilégio
ou diploma todo poderoso.
Semelhante forma de ensino, evitando o diploma e os seus privilégios, extinguiria a
nobreza doutoral; e daria aos jovens da Bruzundanga mais bonestidade no estudo, mais
segurança nas profissões que fossem exercer, com a força que vem da concorrência entre
homens de valor e inteligência nas carreiras que seguem.
Eu não suponho, não tenho a ilusão que alguém tome a sério semelhante idéia.
Mas desejava bem que os da Bruzundanga a tomassem, para que mais tarde não
tenham que se arrepender.
A nobreza doutoral, lá, está se fazendo aos poucos irritante, e até sendo hereditária.
Querem ver? Quando por lá andei, ouvi entre rapazes este curto diálogo:
-- Mas T. foi reprovado?
-- Foi.
-- Como? Pois se é filho do doutor F.?
Os pais mesmo têm essa idéia; as mães também; as irmãs da mesma forma, de modo
a só desejarem casar-se com os doutores. Estes vão ocupar os melhores lugares, as gordas
sinecuras, pois o povo admite isto e o tem achado justo até agora. Há algumas famílias que são
de verdadeiros Polignacs doutorais. Ao lado, porém, delas vai se formando outra corrente,
mais ativa, mais consciente da injustiça que sofre, mais inteligente, que, pouco a pouco, há de
tirar do povo a ilusão doutoral.
É bom não termos que ver, na minha querida Bruzundanga, aquela cena que a
nobreza de sangue provocou, a Taine, no começo da sua grande obra Origens da França
Contemporânea, descreve em poucas e eloqüentes palavras. Eu as traduzo:
"Na noite de 14 para 15 de julho de 1789, o Duque de Larochefoucaud-Liancourt
fez despertar Luís XVI para lhe anunciar a tomada da Bastilha.
-- É. uma revolta? diz o rei.
-- Sire, respondeu o duque, -- é uma revolução".
VII
A diplomacia da Bruzundanga
O ideal de todo e qualquer natural da Bruzundanga é viver fora do pais. Pode-se
dizer que todos anseiam por isso; e, como Robinson, vivem nas praias e nos morros, à espera
do navio que os venha buscar.
Para eles, a Bruzundanga é tida como pais de exílio ou mais do que isso: como uma
ilha de Juan Fernández, onde os humanos perdem a fala, por não terem com quem conversar e
não poderem entender o que dizem os pássaros, os animais silvestres e mesmo as cabras
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semi-selvagens.
Um dos meios de que a nobreza doutoral lança mão para safar-se do país, é obter
empregos diplomáticos ou consulares, em falta destes os de adidos e "encostados" às legações
e consulados.
Convém notar que, quando digo que a ânsia geral é viver fora do país, excetuo os
ativos, aqueles que sugam dos ministérios subvenções, propinas, percentagens e obtêm
concessões, privilégios, etc. Estes demoram-se pouco fora dele e, seja governo o partido
radical, seja governo o partido conservador, esteja o erário cheio, esteja ele vazio, sabem
sempre obter fartos e abundantes recursos monetários de um modo de que só eles têm o
segredo.. Estes senhores gostam muito da Bruzundanga e são ferozes patriotas.
Mas, como lhes contava, os nobres doutores tratam logo de representar o país em
terras estranhas.
Não fazem questão de lugar. Seja no Turquestão ou na Groenlândia, eles aceitam os
cargos diplomáticos.
A um, perguntei:
-- Mas tu vais mesmo para o Anam?
-- Por que não? Não há lá mulheres?
O sonho do jovem diplomático não é ser Talleyrand, é ser Don Juan para usa externo.
Ia até bastante satisfeito, disse-me em seguida, porquanto, lá, não se distinguindo
bem a mulher anamita do homem, devia acontecer surpresas bem agradáveis com
semelhante "engano d'arma ledo e cego".
A sua aprendizagem para o ofício é simples. Além do corriqueiro francês e os usos da
sociedade, os aspirantes a diplomatas começam nos passeios e reuniões da capital da
República a ensaiar o uso de roupas, mais ou menos à última moda. Não esquecem nem o
modo chic de atar os cordões dos sapatos, nem o jeito ultra fashionable de agarrar a bengala;
estudam os modos apurados de cumprimentar, de sorrir; e, quando se os vê na rua,
descobrindo-se para aqui, chapéu tirado da cabeça até à calçada para ali, balouçando a cabeça,
lembramo-nos logo dos cavalos do Cabo de coupé de casamento rico.
Outra cousa que um recomendável aspirante a diplomata deve possuir, são títulos
literários. Não é possível que um milhar de candidatos, pois sempre os há nesse número,
tenham todos talento literário, mas a maior parte deles não se atrapalham com a falta.
Os mais escrupulosos escrevem uns mofinos artigos e tomam logo uns ares de
Shakespeare; alguns publicam livros estafantes e solicitam dos críticos honrosas referências;
outros, quando já empregados no ministério, mandam os contínuos copiar velhos ofícios dos
arquivos, colam as cópias com goma-arábica em folhas de papel, mandam a cousa para a
Tipografia Nacional do país, põem um título pomposo na cousa, são aclamados historiadores,
sábios, cientistas e logram conseguir boas nomeações.
Houve um até que não teve escrúpulo em copiar grandes trechos do Carlos Magno e
os doze pares de França, para ter um soberbo título intelectual, capaz de fazê-lo secretário de
legação, como ainda o é atualmente.
O mais notável caso de acesso na "carreira" foi o que obteve o adido à Secretaria de
Estrangeiros Horlando. Em um jantar de luxo, houve uma disputa entre dous convidados
sobre uma qualidade de peixe que viera à mesa. Um dizia que era garoupa; o outro que era
bijupirá. Não houve meio de concordarem. Horlando foi chamado para árbitro. Levou
amostras para casa. Mandou tirar fotografias, fez que desenhassem estampas elucidativas,
escreveu um relatório de duzentas páginas, e concluiu que não era nem garoupa, nem bijupirá,
mas cação. O seu trabalho foi tido como um modelo da mais pura erudição culinária e o moço
foi logo encarregado de negócios na Guatemala. É hoje considerado como um dos luzeiros da
diplomacia da Bruzundanga.
Cada mandachuva novo traz sempre em mente aumentar o número de legações, de
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modo que não há país no mundo em que a Bruzundanga não tenha um batalhão de
representantes. Muitos desses países não mantêm, com a curiosa república que venho
descrevendo, relações de espécie alguma; mas, como é preciso mandar alguns filhos de
"figurões" para o estrangeiro, a munificência dos poderes públicos não trepida em criar nelas
legações dispendiosas. Há lá até quem reze para que certos países se desmanchem e surjam da
separação novos independentes, permitindo o aumento de legações.
Os rapazes, que vão para elas, saem do país muito bons rapazinhos, às vezes mesmo
mais ricos de influência que de dinheiro; quando, porém, de lá voltam, só porque viram o emir
de Afganistão ou o sultão de Baçora, acreditam-se da melhor nobreza... certamente
muçulmana.
Os seus modos são outros, os seus gestos estudados, pisam à última moda do centro
da Ásia e encetam a conversa sobre qualquer cousa, começando sempre assim:
-- Estava eu em Cabul, quando a mulher do ministro russo...
Cabul soa aí como se fosse Paris, Londres ou Roma e os seus auditores consentem
em admitir que a capital de Afganistão seja mesmo um depósito de elegâncias superiores.
Pelo simples fato de terem palmilhado terras estranhas e terem visto naturalmente
algumas obras-primas, os diplomatas da Bruzundanga se julgam todos eles artistas, literatos,
homens finos, gentlemen.
Não pensem que eles publiquem obras maravilhosas, profundas de pensamentos,
densas de idéias; não é isso bem o que publicam.
Afora um ou outro que não se veste pelo figurino da maioria, o que eles publicam são
sonetos bem rimadinhos, penteadinhos, perfumadinhos, lambidinhos, cantando as espécies de
jóias e adereços que se encontram nas montras dos ourives.
A isto, eles batizam, por conta própria, de aristocracia da arte, arte superior, arte das
delicadezas impalpáveis.
Publicam esses catálogos de ourivesaria, quando não são de modistas e alfaiates, em
edições luxuosas; e, imediatamente, apresentam-se candidatos à Academia de Letras da
Bruzundanga.
Houve tempo em que ela os aceitava sem detença; mas, ultimamente devido à sua
senilidade precoce, desprezou-os e só vai aceitando os taumaturgos da cidade.
Não há médico milagreiro e afreguesado que não entre para ela e pretira os
diplomatas.
Nem sempre foi assim a diplomacia da Bruzundanga. Mesmo depois de lá se ter
proclamado a República, os seus diplomatas não tinham o recheio de ridículo que atualmente
têm.
Eram simples homens como quaisquer, sem pretensões do que não eram, sem
fumaças de aristocracia, nada casquilhos, nem arrogantes.
Apareceu, porém, um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente, o
Visconde de Pancome, que fizeram ministro dos Estrangeiros, e ele transformou tudo.
Empossado no ministério, a primeira cousa que fez foi acabar com as leis e
regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito
popular na Bruzundanga; e vinha a sua popularidade do fato de ter obtido do Rei da
Inglaterra a comenda de Jarreteira para o Mandachuva e seus ministros, assim como o Tosão
de Ouro da Espanha para os generais e almirantes.
Todos os senhores hão de se admirar que tal cousa tenha feito o homem popular. É
que os bruzundanguenses babam-se inteiramente por esse negócio de condecorações e
comendas; e, embora cada qual não tivesse recebido uma, eles se julgavam honrados pelo fato
do Mandachuva, do ministro, dos generais e almirantes terem recebido condecorações tão
famosas no mundo inteiro.
São assim como nós que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter
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adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em
geral, nenhum de nós tenha de seu nem os sete palmos de terra para deitarmos o cadáver.
O visconde, exaltado no ministério, tendo por lei a sua vontade, baseado na
popularidade, fez o que entendeu e a sua preocupação máxima foi dar à representação externa
da Bruzundanga um brilho de beleza masculina, cujo cânon ele guardava secretamente para si.
Daí veio essa total modificação no espírito da representação exterior do país e não houve
bonequinho mais ou menos vazio e empomadado que ele não nomeasse para esta ou aquela
legação.
O seu sucessor seguiu-lhe logo as pegadas, não só neste ponto como em outros mais.
O Visconde de Pancome era de fato um escritor; o novo ministro não o era
absolutamente, mas como substituiu aquele, julgou-se no direito de o ser também e também
membro da Academia de Letras, como tinha sido o seu predecessor.
Publicou em papelão um discurso, impresso em letras garrafais, conseguindo assim
organizar um volume e foi daí em diante igual ao antecessor em tudo.
Não há mal algum que seja assim a diplomacia daquelas paragens. A Bruzundanga é
um país de terceira ordem e a sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem:
enfeita.
E, se os maridos e pais da Bruzundanga têm que andar cheios de cuidados, é melhor
que tais zelos fiquem ao cargo dos estrangeiros. A diplomacia do país tem a sua utilidade...
VIII
A Constituição
QUANDO se reuniu a Constituinte da República da Bruzundanga, houve no país
uma grande esperança. O país tinha, até aí, sido governado por uma lei básica que datava de
cerca de um século e todos os jovens julgavam-na avelhentada e já caduca. Os militares do
Exército, iniciados nas sete ciências do Pitágoras de Montpellier, -- criticavam-na da seguinte
forma: "Qual! Esta constituição não presta! Os que a fizeram não sabiam nem aritmética; como
podiam decidir em sociologia?"
Escusado é dizer que isto não era verdade, mas o critério histórico deles e o seu
orgulho escolar pediam fosse.
Os outros doutores também achavam a Constituição monárquica absolutamente tola,
porque, desde que ela fora promulgada, havia surgido um certo jurista alemão ou aparecido um
novo remédio para erisipelas. A nova devia ser uma perfeição e trazer a felicidade de todos.
Reuniu-se, pois, a Constituinte com toda a solenidade. Vieram para ela, jovens
poetas, ainda tresandando à grossa boêmia; vieram para ela, imponentes tenentes de artilharia,
ainda cheirando aos "cadernos" da escola; vieram para ela, velhos possuidores de escravos,
cheios de ódio ao antigo regímen por haver libertado os que tinham; vieram para ela, bisonhos
jornalistas da roça recheados de uma erudição à flor da pele, e também alguns dos seus colegas
da capital, eivados do Lamartine, História dos girondinos, e entusiastas dos caudilhos das
repúblicas espanholas da América. Era mais ou menos esse o pessoal de que se compunha a
nova Constituinte.
Tinham entrado no ritual da nova República os banquetes pantagruélicos; e, nas
vésperas da reunião, houve um de estrondo.
À sessão inaugural, prestou guarda de honra uma brigada; mas, bem contando, era
unicamente um batalhão.
Quando saíram os constituintes, Z., um deles, perguntava de si para si:
-- Que vou propor eu?
[Linha 1350 de 3733 - Parte 2 de 4]
H. excogitava:
-- Devo ser pelo divórcio? Esses padrões...
B. meditava:
-- Antes não me metesse nisto. O imperador pode voltar e é o diabo...
Quase todos, porém, consideravam com toda a convicção, com todo o
acendramento, com um recolhimento religioso:
-- Qual a Constituição que devemos imitar?
Em geral, eles esperavam ser escolhidos para a comissão dos vinte e um que tinha de
redigir o projeto da futura lei básica, e era justo que tivessem semelhante preocupação
absorvente:
-- Qual a Constituição que devemos imitar?
Votado o regimento interno da grande assembléia e tomadas todas as outras
disposições secundárias, a comissão dos vinte e um membros, encarregada de redigir o projeto,
foi escolhida; e, em reunião, houve entre os seus membros caloroso debate a respeito de quem
deveria ser o relator ou os relatores.
Escolheram, afinal, três sumidades: Felício, Gracindo e Pelino, todos
eles -- ben -- qualquer cousa.
O resto pôs-se a descansar e os três, em sala separada, no dia seguinte, juntaram-se e
trataram dos moldes em que devia ser elaborada a nova Magna Carta.
Pelino foi de parecer que a Constituição futura devia ser vazada no cadinho em que
fora a do país dos Huyhnms.
-- É um país de cavalos! exclamou Gracindo.
-- Que tem isto? retrucou Pelino. Nós somos bastante parecidos com eles.
-- Não, não queremos, objetaram os dous outros.
-- Então, como vai ser? perguntou Pelino. Se não querem à moda dos cavalos, não
podemos achar outro modelo, pois o país dos camelos não tem Constituição.
-- Façamos a Constituição aos modos da de Lilliput, fez Felício.
-- Não me serve! exclamou Pelino. Semelhante gente não pesa, é muito pequena!
-- Então ao jeito da de Brobdingnag, o país dos gigantes.
Todos acharam justa a proposta e começaram a redigir o projeto de Constituição da
Bruzundanga republicana, conforme o paradigma da do país dos gigantes.
Quando Gulliver lá esteve (creio que os senhores se lembram disso), figurou como
um verdadeiro brinquedo. Ninguém o levava a sério como homem; era antes um boneco que
dormia com as moças e tinha outras: intimidades que, se não foram contadas, podem ser
adivinhadas.
A população da Bruzundanga, tirante um atributo ou outro, não era composta de
pessoas diferentes do doutor Gulliver; eram minúsculos bonecos, portanto, que queriam
possuir uma Constituição de gigantes.
Felizmente, porém, já na grande comissão, já no plenário a imitação foi modificada;
e, em muitos pontos, a Carta da Bruzundanga veio a afastar-se da de Brobdingnag.
Houve mesmo disposições originais que merecem ser citadas. Assim, por exemplo, a
exigência principal para ser ministro era a de que o candidato não entendesse nada das cousas
da pasta que ia gerir.
Por exemplo, um ministro da Agricultura não devia entender cousa alguma de
agronomia. O que se exigia dele é que fosse um bom especulador, um agiota, um judeu,
sabendo organizar trusts, monopólios, estancos, etc.
Os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadores das
províncias que os elegiam. As províncias não poderiam escolher livremente os seus
governantes; as populações tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias,
aparentadas pelo sangue ou por afinidade.
[Linha 1400 de 3733 - Parte 2 de 4]
Havia artigos muito bons, como por exemplo o que determinava a não acumulação de
cargos remunerados e aquele que estabelecia a liberdade de profissão; mas, logo, surgiu um
deputado prudente que estabeleceu o seguinte artigo nas disposições gerais: "Toda a vez que
um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da 'situação' ou de
membros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso".
Na constituinte, todos esperavam ficar na "situação", de modo que o artigo acima foi
aprovado unanimemente.
Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticidade
extraordinária. Os presidentes de província, desde que estivessem de acordo com o presidente
da República, -- na Bruzundanga chama-se Mandachuva -- faziam o que queriam.
Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a
Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes
de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo.
Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador de
café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros
fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da "preciosa rubiácea".
Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia. Houve então um
cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo
citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à
"situação".
Como todo o mundo não podia pertencer à "situação", os que ficavam fora dela,
vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios,
e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas.
Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam a fazer o mesmo que os
outros.
Havia apelo para a "Chicana", mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já
citado, decidia de acordo com a 'situação". Era tudo a "situação".
Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da Constituição;
mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma como um sacrilégio.
A Constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma cousa, senão em virtude de lei. Não havia lei que permitisse as províncias deportar
indivíduos de uma para outra, mas o Estado do Kaphet, graças ao tal artigo, deportava quem
queria e ainda encomendava aos jornais que o chamassem de província modelo.
A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para
elegibilidade do Mandachuva, isto é, o Presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou
procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse,
enfim, de uma mediocridade total.
Nessa parte a Constituição foi sempre obedecida.
A República dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos. Têm passado pela curul
presidencial nada menos do que seis Mandachuvas, e não houve, talvez, um que infringisse tão
sábias disposições.
A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi
inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.
No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e
interpretações de modo a não me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que
quisesse escrever um livro de seiscentas páginas.
[Linha 1450 de 3733 - Parte 2 de 4]
IV
Um mandachuva
OS leitores que têm seguido estas rápidas notas sobre os usos e costumes, leis e
superstições da República da Bruzundanga, não devem ter esquecido que o seu presidente é
chamado "Mandachuva", e oficialmente.
Já dei até algumas das exigências constitucionais que os candidatos têm de
preencher, a fim de ascenderem à curul presidencial daquele país, que fica próximo da ilha dos
Lagartos, tão bem descrita pelo meu concidadão Antônio José, que as fogueiras da Inquisição
queimaram em Lisboa.
O que pretendo agora, nestas linhas, é fornecer aos leitores o tipo de um presidente
da curiosa República, infelizmente tão mal conhecida entre nós -- cousa de lastimar, pois ela
nos podia fornecer modelos que nos levassem de vez a completo desastre. Il faut finir, pour
recommencer...
A não ser que suba ao poder, por uma revolta mais ou menos disfarçada, um General
mais ou menos decorativo, o Mandachuva é sempre escolhido entre os membros da nobreza
doutoral; e, dentre os doutores, a escolha recai sobre um advogado.
É justo, pois são os advogados ou bacharéis em direito que devem ter obrigação de
conhecer a barafunda de leis de toda a natureza, embora a arte de governar, segundo o critério
dos que filosofam sobre o Estado e o admitem necessário, não peça unicamente o seco
conhecimento de textos de leis, de artigos de códigos, de opiniões de praxistas e hermeneutas.
As leis são o esqueleto das sociedades, mas a feição de saúde ou doença destas, as
suas necessidades terapêuticas ou cirúrgicas, são dadas pelo prévio conhecimento e exame, no
momento, do estado de certas partes externas e dos seus órgãos vitais, que são o seu comércio,
a sua indústria, as suas artes, os sonhos do seu povo, os sofrimentos dele -- toda essa parte
mutável das comunhões humanas, cambiantes e fugidia, que só os fortes observadores, com
grande inteligência, colhem em alguns instantes, sugerindo os remédios eficazes e as
providências adequadas, para tal ou qual caso.
Como dizia, porém, na Bruzundanga, em geral, o Mandachuva é escolhido entre os
advogados, mas não julguem que ele venha dos mais notáveis, dos mais ilustrados, não: ele
surge e é indicado dentre os mais néscios e os mais medíocres. Quase sempre, é um leguleio da
roça que, logo após a formatura, isto é, desde os primeiros anos de sua mocidade até aos
quarenta, quando o fizeram deputado provincial, não teve outro ambiente que a sua
cidadezinha de cinco a dez mil habitantes, mais outra leitura que a dos jornais e livros comuns
da profissão -- indicadores, manuais, etc.; e outra convivência que não a do boticário, do
médico local, do professor público e de algum fazendeiro menos dorminhoco, com os quais
jogava o solo, ou mesmo o "truque" nos fundos da botica.
É este homem que assim viveu a parte melhor da vida, é este homem que só viu a
vida de sua pátria na pacatez de quase uma aldeia; é este homem que não conheceu senão a
sua camada e que o seu estulto orgulho de doutor da roça levou a ter sempre um desdém
bonanchão pelos inferiores; é este homem que empregou vinte anos, ou pouco menos, a
conversar com o boticário sobre as intrigas políticas de seu lugarejo; é este homem cuja cultura
artística se cifrou em dar corda no gramofone familiar; é este homem cuja única habilidade se
resume em contar anedotas; é um homemdestes, meus senhores, que depois de ser deputado
provincial, geral, senador, presidente de província, vai ser o Mandachuva da Bruzundanga.
Hão de dizer que, passando por tão-altos cargos que se exercem em grandes cidades,
nas capitais, o futuro Mandachuva há de ter recebido outras impressões e ganhar, portanto,
[Linha 1500 de 3733 - Parte 2 de 4]
idéias mais amplas. Naturalmente, ele há de adquirir algumas, mas não tantas que modifiquem
a sua primitiva estrutura mental.
Durante este longo tempo em que ele passa como deputado, senador, isto e aquilo, o
esperançoso Mandachuva é absorvido pelas intrigas políticas, pelo esforço de ajeitar os
correligionários, pelo trabalho de amaciar os influentes e os preponderantes, na política geral e
regional. A sua atividade espiritual limita-se a isto.
Os preponderantes e influentes têm todo o interesse em não fazer subir os
inteligentes, os ilustrados, os que entendem de qualquer cousa; e tratam logo de colocar em
destaque um medíocre razoável que tenha mais ambição de subsídios do que mesmo a vaidade
do poder.
Além disso, eles têm que atender aos capatazes políticos das localidades das
províncias; e, em geral, estes últimos indicam, para os primeiros postos políticos, os seus filhos,
os seus sobrinhos e de preferência a estes: os seus genros.
A ternura do pai quer sempre dar essa satisfação à vaidade das filhas.
O futuro chefe do governo da Bruzundanga começa a sua carreira política pela mão
do sogro; e, relacionando-se com os bonzos de sua província, se é esperto e apoucado de
inteligência e saber, faz-se ainda mais; na maioria dos casos, porém, não é preciso tanto. Os
caides ficam logo contentes com ele. Mandam-no para a Câmara Geral; e, durante a primeira
legislatura, encarregam-no de comprar ceroulas, pares de meias, espingardas de dous canos,
óculos de grau tanto, de ir às repartições ver tal requerimento, de empenhar-se pelos exames
dos nhonhôs, etc...
Quando acaba a legislatura, o Messias anunciado para salvar a Bruzundanga é
possuidor de todo esse acervo de serviços ao partido. É reeleita. A sua lealdade e o seu natural
prestativo indicam-no logo para leader da bancada, senão da Câmara. Ei-lo em evidência. Os
jornalistas, grandes e pequenos, não o deixam, elogiam-no, dão-lhe o retrato nas folhas, fazem
pilhérias a respeito do homem; e ele autoriza a publicação de atos oficiais do governo de sua
província, cujas contas o erário departamental paga generosamente aos seus jornais e revistas.
Os calenders provincianos estão cada vez mais contentes com ele e o nosso homem já
economizou, sobre subsídios, mais do que a mulher trouxe para a sociedade conjugal.
É um homem metódico, pontual nos pagamentos, não gasta dinheiro em cousas
inúteis, como seja em livros.
Uma noite ou outra, vai ao Teatro Lírico, mas logo se aborrece, não só ele como a
futura Mme. Mandachuva. Preferia, madame, estar a dormir naquela hora, e ele a jogar solo na
botica, antes do que permanecerem ali, apertados nos vestuários, a ouvir umas cantorias em
língua que não entendem. Que saudades do gramofone! Para ele, há secas piores...
Ainda a música ele suporta um tanto, mas as tais exposições de pintura, as sessões de
Academias... Irra! Que estafa!
Foge de ir a elas; e todo o seu medo é vir a ser presidente da Bruzundanga, pois será
obrigado a comparecer a tais festas.
A sua leitura continua a ser os jornais, porém não pega mais nos manuais, nos
indicadores de legislação.
As necessidades artísticas de sua natureza se cifram no gramofone doméstico e nos
cinemas urbanos ou do arrabalde em que reside. Faz coleção dos programas destes últimos e,
com eles, organiza a sua opulenta biblioteca literária.
A proporção que sobe, mostra-se mais carola; não falta à missa, aos sermões,
comunga, confessa-se e os padres e irmãs de caridade têm-no já por aliado. Ah! Quem o visse
contar certas anedotas sobre padres, jogando o "truque", nos fundos da botica de sua terra!...
História antiga! O homem, hoje, é sinceramente católico, e tanto assim que acompanha
procissões de opa ou balandrau.
A ascensão dele a Senador até coincidiu com a sua eleição para irmão fabriqueiro da
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Santíssima Irmandade e Santo Afonso de Ligório e também com a de definidor da Santíssima
e Venerável Irmandade de Santo Onofre.
As cousas vão assim marchando; e ele, sempre calado, deixa-se ficar, rodando a
manivela do gramofone e do seu moinho de rezas.
Há uma complicação na escolha do Governador da província das Jazidas, onde ele
nasceu. Os caides não se entendem e o seu nome é apontado como conciliador, escolhido e
eleito. Aborrece-se um pouco, pois já estava habituado com a capital do país, e muito gostava
dela, apesar de mal a conhecer. Toma posse, entretanto. Surge, ao meio do seu governo
regional, não entre os caides, mas na comunhão dos emires que governam o país, um
desaguisado, com o problema da sucessão do Mandachuva, cujo tempo está a acabar. O nosso
homem não se define. Continua a dar corda no seu enorme e fanhoso gramofone e a rodar a
manivela do seu moinho de rezas. Os padres, que são seus aliados, não o abandonam; e nos
bastidores, por intermédio das mulheres dos políticos, insinuam-lhe o nome para o alto cargo
de Mandachuva. Ei-lo eleito, toma posse do cargo e do alcatifado palácio que a nação lhe dá
para residência.
O seu primeiro cuidado, e também da mulher, é fechar diversos aposentos para
diminuir o número de serviçais, de modo afazer economias na verba de representação.
O cargo dá-lhe certos incômodos, mas muitas vantagens: não paga selo nas cartas,
não paga bonde, trem, nem teatros, onde continua a quase não ir. O que o aborrece, sobretudo,
são as audiências públicas -- uma importunação para esse parente de São Luiz. Mais o amolar
que lhe dão fadiga. Ao sair de uma delas, diz à mulher:
-- Que povo aborrecido!
-- Mas que tem você com o povo? -- pergunta Mme. Mandachuva, a Egéria conjugal.
Para distrair-se, o esclarecido Mandachuva compra um bom gramofone e instala no
palácio um cinema.
É conveniente lembrar que, nesse mesmo palácio, ao tempo em que a Bruzundanga
era Império, executores famosos no mundo inteiro tinham tocado obras-primas musicais, no
violino e no piano. Houve progresso...
Eis aí um Mandachuva perfeito.
X
Força armada
NA Bruzundanga não existe absolutamente força armada. Há, porém, cento e setenta
e cinco generais e oitenta e sete almirantes. Além disto, há quatro ou cinco milheiros de
oficiais, tanto de terra como de mar, que se ocupam em fazer ofícios nas repartições. O fim
principal dessas repartições, no que toca ao Exército, é estudar a mudança de uniformes dos
mesmos oficiais. Os grandes costureiros de Paris não têm tanto trabalho em imaginar modas
femininas como os militares da Bruzundanga em conceber, de ano em ano, novos fardamentos
para eles.
Quando não lhes é possível de todo mudá-los, reformam o feitio do boné ou do
calçado. É assim que já usaram os oficiais do Exército de lá, coturnos, borzeguins, sandálias,
sabots e aquilo que nós chamamos aqui -- tamancos.
Entretanto, o Exército da Bruzundanga merece consideração, pois tem boas
qualidades que desculpam esses pequenos defeitos. É às vezes abnegado e quase sempre
generoso, e eu, que vivi entre os seus oficiais muito tempo, tendo tido muitas questões com
eles, posso dizer que jamais os supus tão tolerantes. Foi, no que me toca, um traço que, além
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de me surpreender, me cativou imensamente. Demais, apesar de toda e qualquer presunção que
se lhes possa atribuir, eles têm sempre um sincero respeito pelas manifestações da inteligência,
partam elas de onde partirem.
O mesmo não se pode dizer da Marinha. Ela é estrictamente militar e os seus oficiais
julgam-se descendentes dos primeiros homens que saíram de Pamir. Não há neles a
preocupação de constante mudança de fardamento; mas há a de raça, para que a Bruzundanga
não seja envergonhada no estrangeiro possuindo entre os seus oficiais de mar alguns de origem
javanesa. Os mestiços de javaneses, entretanto, têm dado grandes inteligências ao país, e
muitas.
A marinha da Bruzundanga, porém, com muito pouco entra para o inventário
intelectual da pátria que ela diz representar no estrangeiro com os seus navios paralíticos.
Se, de fato, lá houvesse Marinha, podia-se dizer que era mantida pelo povo da
Bruzundanga para gáudio e alegria dos países estranhos.
As principais produções dos arsenais de guerra do país são brinquedos aperfeiçoados;
e os da Marinha são muito estimados na nação pela perfeição das redes de pescaria que lhe
saem dos estaleiros.
Uma das curiosidades da Armada daquele país é a indolência tropical dos seus
navios que, às vezes, por mero capricho, teimam em não andar.
Enfim, a força armada da Bruzundanga é a cousa mais inocente deste mundo. Em
face dela, todo o pacifismo ou humanitarismo é perfeitamente ridículo.
XI
Um ministro
ESTAS "notas" sobre a Bruzundanga ameaçam não acabar mais. Temo, ao
escrevê-las tão longas como as Histórias de Heródoto, não virem elas, apesar disso, merecer a
imortalidade da obra do viajante grego.
Contudo, se a posteridade não encontrar nelas algum ensinamento, e as desprezar, os
contemporâneos do meu país podem achar nestas rápidas narrações de coisas de nação tão
remota, moldes, receitas e meios para esbodegar de vez o Brasil.
Esbocei em um capítulo antecedente o tipo de Mandachuva da Bruzundanga; agora,
vou ver se debuxo o de um ministro daquele país.
A Bruzundanga, como o Brasil, é um país essencialmente agrícola; e, como o Brasil,
pode-se dizer que não tem agricultura.
O regímen de propriedade agrícola lá, regímen de latifúndios com toques feudais, faz
que o trabalhador agrícola seja um pária, quase sempre errante de fazenda em fazenda, donde
é expulso por dá cá aquela palha, sem garantias de espécie alguma -- situação mais agravada
ainda pela sua ignorância, pela natureza das culturas, pela politicagem roceira e pela
incapacidade e cupidez dos proprietários.
Estes, em geral, são completamente inábeis para dirigir qualquer coisa, indignos da
função que a obscura marcha das coisas depositou em suas mãos. Pouco instruídos, apesar de
formados, nisto ou naquilo, e sem iniciativa de qualquer natureza, despidos de qualquer
sentimento de nobreza e generosidade para com os seus inferiores, mais ávidos de riqueza que
o mais feroz taverneiro, pimpãos e arrogantes, as suas fazendas ou usinas são governadas por
eles, quando o são, com a dureza e os processos violentos de uma antiga fazenda brasileira de
escravos.
Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos com influência nos lugares em
[Linha 1650 de 3733 - Parte 2 de 4]
que têm as suas fazendas agrícolas; e, apoiados na política, fazem o que querem, são senhores
de baraço e cutelo, eles ou os seus prepostos.
O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando se estabelece nas suas
propriedades, tem todas as promessas e todas as garantias verbais. Constrói o seu rancho, que
é uma cabana de taipa coberta com o que nós chamamos sapê, e começa a trabalhar para o
barão, desta ou daquela maneira. Não me alongo mais sobre a vida deles, porque pouco vivi na
roça da Bruzundanga; mas posso asseverar que o trabalhador agrícola daquele país -- esteja o
café em alta, esteja em baixa, suba o açúcar, desça o açúcar -- há trinta anos ganha o mesmo
salário, isto é, dez tônios por dia, a seco, o que quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos e
dous mil-réis, sem alimentação.
Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalhadores agrícolas.
A parte povoada e cultivada do país tem já uma razoável população e talvez suficiente para as
suas necessidades, mas, à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram do seu
suor, em breve deixam-se cair em marasmo, em desânimo, ou vêm a morrer de miséria nas
cidades, onde se sentem mais garantidos contra o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.
Como os grandes agricultores e seus parentes são políticos, e deputados, e senadores,
e ministros, logo que sentem o êxodo dos naturais, começam a berrar que há falta de braços.
Publicam uns fascículos desonestamente optimistas, onde há as maiores hipérboles laudatórias
ao clima e à fertilidade da Bruzundanga e atraem emigrantes incautos.
Os primeiros que chegam com aquele fervor de quem "queimou os seus navios",
trabalham vigorosamente e abarrotam de dinheiro os régulos das feitorias; mas já seus filhos
não são assim. Logo se enchem do mesmo desânimo que os seus patrícios mais antigos, na
terra, e começam a cair naquele marasmo, naquela apatia, naquela tristeza, que se evola, com
um grande apelo à embriaguez sexual, das cantigas populares do país e cobre a roça da
Bruzundanga de um sudário impalpável.
A manobra dos fazendeiros e outros agricultores é mudar, de quando em quando, a
nacionalidade dos emigrantes que vão buscar. Assim, eles conseguem manter o fogo sagrado e
ter trabalhadores abnegados.
Tudo isto se dá porque o fazendeiro ou grande agricultor da Bruzundanga quer ter
da sua cultura lucros imensos que lhe proporcionem uma vida de fausto, a ele, aos filhos que
estudam para doutor, às filhas para casarem com a nobreza do país. O crédito agrícola é, por
isso, até prejudicial à lavoura da paradoxal República.
Em geral, vivem fora das propriedades, nas grandes cidades, sob o pretexto de
educarem as filhas e os filhos mas com o secreto intuito de arranjar bons partidos matrimoniais
para as meninas.
Foi entre semelhantes morubixabas que certo Mandachuva escolheu um seu Ministro
da Agricultura. Remontemos as origens desse cacique do açúcar, os piores da Bruzundanga,
pois lidam em geral com os naturais do pais que não têm a quem se queixar. Na província das
Canas, houvera um turumbamba mais ou menos oficialmente protegido por um Mandachuva,
motivo esse que derrubou a oligarquia da família dos Cravhos. Um usineiro muito rico da
mesma província, Phrancisco Novilho Ben Kosta, mais conhecido por Chico Caiana, tinha
adiantado dinheiro e assoldadado gente para que o general Tupinambá tomasse o lugar do
soba-mor Cravho Ben Mathos. O general vitorioso ficou muito agradecido ao Chico, e
prometeu dar-lhe uma posição de destaque na política.
Chico era o tipo do grande agricultor da Bruzundanga: nada entendia de agricultura,
mesmo daquela que dizia exercer.
As canas que moía nos seus engenhos, eram plantadas por outros, a quem ele
impunha o preço do carro como bem entendia; e, no que toca à moagem e preparo do açúcar,
aí já de indústria, ele nada ou pouco conhecia.
Apesar de bacharel em direito, mal lia os jornais e o seu forte, em aritmética, era a
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conta de juros, de cabeça. A sua usina era de fato dirigida por um francês boêmio, Ormesson,
a quem chamavam de doutor, apesar de ter ele unicamente um simples curso do Conservatoire
des Arts et Métiers, de Paris.
Charles Ormesson, o tal francês, com o ser prático e hábil no ofício, era um
extravagante incorrigível; e, como tal, pouco exigente de dinheiro e facilmente explorável.
Bebia desregradamente e fazia do feroz doutor Chico Novilho gato e sapato. O doutor
Novilho não o despedia, apesar de seus pruridos disciplinadores até à tirania, por sordícia.
Caiana nada entendia daqueles mistérios de fazer da cana, açúcar; e, se fosse mexer nos
aparelhos, nas turbinas, dosar o caldo, etc., etc., a cousa era capaz de explodir como pólvora.
Acrescia mais ainda que ele conseguia pagar a Ormesson o que bem entedia; e, se quisesse
substituí-lo, o outro talvez custasse mais caro. Aturava o francês e explorava-o. Conservando
Ormesson, reservava o seu autoritarismo para os outros pobres diabos de empregados
subalternos, colonos e mais gente sob o seu guante.
Toda a manhã, em tempo de safra, inteiramente de branco, montado no "Quitute",
um cavalo ruço-malhado, Caiana, corria os canaviais; e, se se encontrava com um comboio de
canas, nas usineiras linhas Decauville, olhava a pequena locomotiva e sempre se lembrava de
admoestar o foguista-maquinista:
-- Olhe o manômetro que não está limpo.
Eis aí a sua agricultura, de que veio tirá-lo o braço forte do general Tupinambá.
Vejamos como. Ascendendo à governança da Província das Canas, Tupinambá tratou logo de
eleger senador da Bruzundanga o seu forte esteio eleitoral, o doutor Chico Caiana. Arranjaram
as atas e mandaram-nas, e mais ele, para a capital do país.
Quando saltou, era um gozo ver o Chico Caiana atravessar as ruas com um ostentoso
chapéu Panamá, terno de linho branco, botinas inteiriças de pelica amarela e açoiteira pendente
do pulso direito. Olhava tudo alvarmente; e, de quando em quando, ficava surpreendido de
que ninguém o conhecesse. O doutor Chico Caiana, da usina do Cambambu! Não conhecem?
Que gente fútil!
O Senado não o quis reconhecer; porém, Mandachuva, que tinha a palavra
empenhada com Tupinambá, arranjou as cousas. Determinou que o Ministro da Guerra fosse
estudar na Europa o fabrico dos mais modernos medicamentos alemães; transferiu o Ministro
da Agricultura para a pasta da Guerra e nomeou Caiana para aquela outra.
Tomando posse, o famoso e prático usineiro imediatamente teve uma grande
admiração.
-- Onde está aqui agricultura?... Estes papéis... Isto não é prático!... Quero cousas
práticas!... Canaviais... Engenhos... Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!
Mandou chamar Ormesson para ajudá-lo e, nesse ínterim, andou às cristas com os
seus subalternos. Vinha o chefe da Contabilidade e ele gritava:
-- Qual verba 29, letra A! Isto é uma trapalhada! Quero cousas práticas! Vou chamar
o Félix, o meu guarda-livros, lá do Cambambu, a minha usina. Conhece?
O inspetor do serviço de veterinária vinha pedir-lhe autorização para instalar um
laboratório e Caiana berrava:
-- Qual laboratório! Qual nada! Tudo isto é pomada! Vou mandar chamar o
Nicodemo. Conhece? Pois trata toda a espécie de moléstias de animais com sangria ou óleo de
andaiaçu. Quero cousas práticas! Práticas, está ouvindo?
Tendo chegado o francês e o guarda-livros, ele recomendou ao primeiro:
-- Ormesson, vê como havemos de fazer isto aqui ser mesmo de agricultura. Quero
cousa prática! Hein? Vê lá, se vais beber! Hein?
Ao guardo-livros, ele disse:
-- Tome conta dessas cousas de papéis aí, que não pesco nada disso.
A Nicodemo, nada o doutor Chico recomendou, porque o alveitar não quis deixar as
[Linha 1750 de 3733 - Parte 2 de 4]
Canas.
O francês não bebeu e, dias depois, trouxe o projeto de transformar a chácara da
Secretaria em campo agrícola.
-- Amendoim! -- exclamou o Ministro. -- Não dá nada! Se fosse cana... "Mindobi", só
para preta velha vender torrado...
Ele não conhecia, não admitia outra cultura que não fosse a da cana-de-açúcar.
Ormesson convenceu-o e o ministro determinou o plantio aconselhado. Um dos diretores
pediu autorização para admitir trabalhadores.
-- Trabalhadores! Ponha lá os escriturários, esses escreventes todos...
-- Mas...
-- Não tem mas, não tem nada! Quem não quiser, deixe o lugar, que eu arranjo outros
mais baratos.
Não houve remédio senão os oficiais da sua Secretaria de Estado irem puxar o rabo
da enxada.
Houve, no ano seguinte, uma complicação internacional e o açúcar começou a ser
procurado. Chico Caiana não se importou mais com as cousas do ministério e aproveitou a
posição para ganhar dinheiro. Durante muito tempo, o Mandachuva não o viu. O guarda-livros
era quem lhe levava os atos necessitados da assinatura presidencial.
Um dia o chefe do governo perguntou ao auxiliar do grande agricultor:
-- Onde está o doutor Phrancisco Novilha?
-- Está ocupado com coisas práticas.
XII
Os heróis
A República da Bruzundanga, como toda a pátria que se preza, tem também os seus
heróis e as suas heroínas.
Não era possível deixar de ser assim, tanto mais que a prática sempre foi feita para os
heróis, e estes, sinceros ou não, cobrem e desculpam o que ela tem de sindicato declarado.
Um país como a Bruzundanga precisa ter os seus heróis e as suas heroínas para
justificar aos olhos do seu povo a existência fácil e opulenta das facções que a têm dirigido.
O mais curioso herói da pátria bruzundanguense é sem dúvida uma senhora que nada
fez por ela, antes perturbou-lhe a vida, auxiliando um aventureiro estrangeiro que se meteu nas
suas guerras civis.
Para bem compreenderem o meu pensamento, é preciso que antes lhes recorde por
alto alguns pontos da história política da Bruzundanga. Vou fazê-lo.
A atual república consta de territórios descobertos pelos iberos e povoados por eles e
por outros povos das mais variadas origens.
Os colonizadores fundaram várias feitorias; e, quando fizeram a independência da
Bruzundanga, essas feitorias ficaram sendo províncias do Império que foi criado.
Feita a República, elas ficaram mais ou menos como eram, com mais independência e
outras regalias. Portanto, é claro que a evolução política da Bruzundanga tinha por expressão a
unidade dessas províncias, e era mesmo o seu fim. Qualquer pessoa que tenha tentado, ou
venha a tentar, o desmembramento dessas províncias, não pode ser tido como herói nacional.
Pois bem: um senhor estrangeiro, cheio de qualidades, talvez, meteu-se de parceria
com uns rebeldes, para separar uma dessas províncias do bloco bruzundanguense. Isto ao
tempo do império. Em caminho, em uma de suas correrias, encontrou-se com uma moça da
Bruzundanga que se apaixonou por ele. Seguiu-o nas suas aventuras e combates contra a união
[Linha 1800 de 3733 - Parte 2 de 4]
bruzundanguense.
Até aí nada de novo. É comum, até. Mas querer fazer de semelhante dama heroína
da Bruzundanga, é que nunca pude compreender. Eu me ponho aqui no ponto de vista dos
patriotas, para os quais a pátria é una e indivisível. Se me pusesse sob qualquer outro ponto de
vista, então a tal dama heroína nada de notável teria a meus olhos a não ser a dedicação até ao
sacrifício pelo seu amante, mais tarde seu marido. Isto mesmo, porém, não é virtude que torne
uma mulher excepcional, pois é comum nelas, a menos que tal dedicação sirva de moldura às
qualidades excepcionais do seu marido ou do seu amante. No caso, porém, encarando-o
estrictamente sob o aspecto da evolução política da Bruzundanga, o seu marido não era mais
do que um aventureiro.
É semelhante senhora que lá, naquelas plagas, comparam à Jeanne d'Arc. Admirável!
Por aí, podem os senhores ver de que estofo são os heróis da Bruzundanga; mas há
outros.
Como sabem, a Bruzundanga foi, durante um século, Império ou Monarquia. Há seis
ou sete lustros os oficiais do seu exército começaram a ficar descontentes e juntaram-se a
outros descontentes civis, que tinham achado para resumir as suas vagas aspirações a palavra
República. Começaram a agitar-se e, em breve, tinham a adesão dos senhores de escravos, cuja
libertação os fizera desgostosos com o trono da Bruzundanga.
Os amigos do Império, vendo que as cousas perigavam, trataram de enfrentar a
corrente com decisão e chamaram, para condestável da Bruzundanga, um velho general que
vivia retirado nas suas propriedades agrícolas.
Era de crer que semelhante condestável pudesse ser vencido, mas que confabulasse
com os inimigos que vinha combater, não era possível admitir! Pois foi o que ele fez. Não sou
eu quem o diz; são os seus próprios companheiros. Ainda há meses, recebi um jornal da
Bruzundanga, em que um grande e notável fabricante da República de lá contava como as
cousas se tinham passado. Narra esse senhor, como o condestável, nas vésperas da
proclamação da República, enganara aqueles que tinham depositado confiança nele, para servir
os contrários. Eis aí os começos de um herói da República dos Estados Unidos da
Bruzundanga! Ele, porém, ainda nos merece mais algumas palavras. Este último herói é lá
chamado Consolidador da República. Sabem por quê? Porque não consolidou cousa alguma.
Não houve Mandachuva, pois ele o foi, da Bruzundanga, quem mais desrespeitasse as leis da
República. Entender-se-ia que a havia consolidado se o seu governo fosse fecundo dentro das
leis da Bruzundanga. Ele, porém, saltou por cima de todas elas e governou a seu talante.
Mostrou que as leis da República não prestavam e, longe de consolidá-las, abalou-as nos seus
fundamentos. Tal cousa, na hipótese do seu governo ter sido bom e fecundo; mas não o foi.
Isto, porém, não nos interessa. Ele é um dos heróis da Bruzundanga que, em falta de um
Carlyle, teve um aqui escultor que lhe fez um monumento, erecto em uma das praças da
capital, monumento tão curioso que precisa de um guia, de um tratado escrito, para ser
compreendido. Arte do futuro; Beyreuth da Bruzundanga.
Outro herói da Bruzundanga é o Visconde de Pancome. Este senhor era de fato um
homem inteligente, mesmo de talento; mas lhe faltava o senso do tempo e o sentimento do seu
país. Era um historiógrafo; mas não era um historiador. As suas idéias sobre história eram as
mais estreitas possíveis: datas, fatos estes mesmos políticos. A história social, ele não a sentia e
não a estudava. Tudo nele se norteava para a ação política e, sobretudo, diplomática. Para ele
(os seus atos deram a entender isto) um país só existe para ter importância diplomática nos
meios internacionais. Não se voltava para o interior do país, não lhe via a população com as
suas necessidades e desejos. Pancome sempre tinha em mira saber como havia de pesar, lá
fora, e ter o aplauso dos estrangeiros.
Sabendo bem a história política da Bruzundanga, julgava conhecer bem a nação.
Sabendo bem a geografia da Bruzundanga, imaginava ter o país no coração.
[Linha 1850 de 3733 - Parte 2 de 4]
Entretanto, forçoso é dizer que Pancome desconhecia as ânsias, as dificuldades, as
qualidades e defeitos de seu povo. A história econômica e social da Bruzundanga ainda está
por fazer, mas um estadista (critério clássico) deve tê-la no sentimento. Pancome não a tinha
absolutamente. A sua visão era unicamente diplomática e tradicionalista.
Estava como embaixador em um país qualquer e um Mandachuva fê-lo Ministro de
Estrangeiros. Logo que tomou posse, o seu primeiro cuidado foi mudar o fardamento dos
contínuos. Pôs-lhes umas longas sobrecasacas com botões dourados. A primeira reforma.
Tendo conseguido adjudicar à Bruzundanga vastos territórios, graças à leitura atenta de
modestos autores esquecidos, a sua influência sobre o ânimo do Mandachuva, era imensa.
Convenceu-o que devia modificar radicalmente o aspecto da capital. Era preciso, mas devia
ser feito lentamente. Ele não quis assim e eis a Bruzundanga, tornando dinheiro emprestado,
para pôr as velhas casas de sua capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade
desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na
cousa muito de cenografia.
Não contente com isto, convenceu o Mandachuva que devia adquirir uma esquadra
poderosa. Eis a Bruzundanga a pedir dinheiro aos judeus da City para construir uma esquadra
poderosa. E as festas? E os anúncios?
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