sábado, 21 de outubro de 2017

Os Bruzundangas - Parte 4 de 4 - Lima Barreto


Os Bruzundangas - Parte 4 de 4 - Lima Barreto

Os Bruzundangas - Lima Barreto


Em seguida, convenceu o Mandachuva que o país devia ser conhecido na Europa por
meio de uma imensa comissão de propaganda e de anúncios nos jornais, cartazes nas ruas,
berreiros de camelots, letreiros luminosos, nas esquinas e em outros lugares públicos.




A sua vontade foi feita; e a curiosa nação, em Paris foi muitas vezes apregoada nos
boulevards como o último específico de farmácia ou como uma marca de automóveis.
Contam-se até engraçadas anedotas.
Nos anúncios luminosos, então, a sua imaginação foi fértil. Houve um que ficou
célebre e assim rezava: "Bruzundanga, País rico  -- Café, cacau e borracha. Não há pretos".
Não ficou aí. Mostrou a necessidade de uma esquadra poderosa e o Mandachuva
encomendou uma custosíssima, para o serviço da qual o país não tinha marinheiros dignos,
arsenais, é que pôs de alcatéia a República das Planícies.
Tudo isto e mais a transformação da capital, da noite para o dia, fato a que já aludi,
endividaram sobremodo o país e, com a vinda de um inepto Mandachuva, para cuja ascensão
ele muito concorreu, a Bruzundanga veio a ficar na miséria.
Por essas e outras, foi Pancome proclamado o maior estadista da nação, embora a
situação interna, durante o seu longo ministério (quase dez anos), piorasse sempre e cada vez
mais, sem que ele apresentasse ou lembrasse medidas para remediar um tal estado de
descalabro.
Tirassem-no das coisas fantasmagóricas e berrantes que feriam a vaidade pueril do
povo, fazendo este supor que a Bruzundanga era respeitada na Europa; tirassem-no daí que
ninguém era capaz de sacar-lhe da cachola uma idéia de governo, um alvitre de verdadeiro
estadista.
Basta dizer, para se avaliar a triste situação interna da extravagante nação de que lhes
dou notícias, que, nos arredores da capital, se morria à míngua, à fome, as terras estavam
abandonadas e invadidas pelas depredadoras saúvas, a população roceira não tinha direitos
nem justiça e vivia à mercê de cúpidos e ferozes senhores de latifúndios, cuja sabedoria
agronômica era igual à dos seus capatazes ou feitores.
Mas o povo, graças aos poetas e jornalistas simoníacos, não queria capacitar-se de
que Pancome era simplesmente decorativo e continuou a admirá-lo como um semideus.
E ele fazia o que queria e se agora estava atrapalhado com a nomeação de um
amanuense, não era porque fosse do seu natural respeitar as leis.
Há um pequeno e passageiro temor da natureza daquele que sentem os heróis quando
vão entrar em combate.
Já nomeara pouco mais de meia dúzia por meio de concurso mas não estava satisfeito
com essas nomeações.
E verdade que os que nomeara, trajavam regularmente, engraxavam as botas e não
tinham nunca o colarinho sujo. Eram já grandes qualidades, porque de tal forma viera a
encontrar o pessoal da secretaria, esbodegado, relaxado, vestindo roupas baratas, morando nos
subúrbios, que foi necessário toda a sua energia para que ele modificasse tão maus hábitos.
As verbas do ministério pagaram a quase todos, desde o servente até um chefe de
secção, ternos bem talhados, camisas finas, botinas de bom cabedal, etc. Assim, conseguira dar
um ar de Foreign Office ou de Quai d'Orsay à modesta Secretaria de Estrangeiros do modesto
país da Bruzundanga.
A sua atrapalhação estava na tal história do concurso, pois até ali, devido a tão tola
formalidade, não conseguira ter nos cargos de amanuenses moços bonitos e demais, para fazer
concursos, sempre apareciam uns rebarbativos candidatos de raça javanesa, com os quais ele
embirrava solenemente.
Da última vez, até, quase que um atrevido javanês puro consegue o primeiro lugar, tal
era o brilho de suas provas; Pancome, porém, arranjou as cousas tão lealmente diplomáticas
que o rapaz perdeu a última prova.


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Não queria que a cousa se repetisse e estudava o modo de, evitando o concurso,
encontrar um candidado bonito, bem bonito, não sendo em nada javanês, que pudesse oferecer
aos olhares do ministro da Coréia ou do Afganistão um belo exemplar da beleza masculina da
Bruzundanga.
Todos os candidatos que se haviam apresentado não preenchiam essa exigência do
seu alto critério governamental.
Alguns eram mesmo feios, outros tinham toques de javanês, e nenhum a beleza
radiante que ele queria ver nos amanuenses.
Essas suas sábias medidas, para recrutamento do seu pessoal, levaram para a sua
secretaria moços bonitos e excelentes mediocridades, que ainda procuravam demonstrar a sua
principal qualidade intelectual, publicando borracheiras idiotas ou compilações rendosas e
pesadas ao Tesouro; entretanto, em certo e determinado sentido, foram profícuas, como teve
ocasião de verificar o sucessor de Pancome.
Este, por ocasião de uma festa de sustância, encontrou nos amanuenses e oficiais da
escola do visconde, soberbos estofadores, magníficos tapeceiros, exímios ornamentadores de
salas; e, de tal forma um dado arrumou retratos nas paredes de seu salão, que o Ministro da
Inglaterra ofereceu-lhe um bem remunerado lugar na domesticidade do castelo de Windsor.
O obstáculo do concurso fazia o visconde pensar a toda a hora e instante na vaga de
amanuense, e ele já se resolvera a removê-lo por completo, sem dar nenhuma satisfação a quem
quer que fosse, quando, ao despachar o expediente daquele dia, lhe veio ter às mãos um
requerimento com fotografias apensas.
Em geral, os ministros não lêem o que despacham; limitam-se a rubricar o despacho
do secretário ou oficial de gabinete. Pancome não fazia exceção na regra, mas aquele papel,
com fotografias, despertou-lhe a atenção. Leu-o. Tratava-se do bacharel Sune Wolfe, que
requeria ser provido no lugar vago de amanuense; e, para que avaliar pudesse o senhor
Ministro da sua beleza física, juntava aqueles dos retratos, um de perfil e outro de frente.
A secretaria tinha exigido selos de juntada em tais documentos e o despacho do
secretário era nesse sentido. O visconde, como sempre, pouco disposto a obedecer às leis, não
se incomodou; e, cheio de admiração pela boniteza do requerente riscou o despacho e escreveu
com a sua letra um outro, determinando que o candidato comparecesse à sua presença.
No dia seguinte o rapaz foi ter com o ministro, que ficou embasbacado diante do
lindo candidato.
De fato, era bonito, bonitinho mesmo, desbotado de cútis, e parecia até fabricado em
Saxe ou em Sèvres. Tinha uns lindos dentes, um belo cabelo cuidado, não era alto, mas era
bem apessoado. Merecia muito bem um bom casamento rico; contudo, o visconde quis melhor
examiná-lo e perguntou:
-- O senhor sabe sorrir bem?
O candidato não se atrapalhou e acudiu com firmeza:
-- Sei, Excelência.
-- Vamos ver.
E o lindo moço repuxou os lábios, entortou o pescoço de um lado, gracilmente,
ajeitou os olhos e todo ele foi uma lindeza de impressionar o pacato secretário que, ao lado,
assistia ao exame, completamente embrulhado em um fraque venerável e cheio de
embevecimento.
Contente com isto, o ministro tratou de ir mais longe na experiência das excepcionais
qualidades que o candidato revelava e convidou-o com voz paternal:
-- Aperte a mão, ali, do Major Marmeleiro (o secretário). Faça o favor.
O examinando não se fez de rogado. Juntou os pés, curvou docemente o busto,
levantou o braço e, sempre sorrindo, cumprimentou:
-- Senhor Major Marmeleiro...


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Pancome não cabia em si de contentamento com a sideral aquisição que estava ali.
Que elegância! Que lindeza! Dessa feita é que ele ia fazer uma nomeação justa e sábia. Arre!
Não era sem tempo...
Era preciso, porém, ver se o donzel conhecia algumas outras cousas de sociedade.
-- O senhor sabe dançar? perguntou.
-- Sei, Excelentíssimo.
-- Vamos ver.
-- Mas só e sem música, senhor visconde?!
Ordenou o ministro que o contínuo fosse chamar um certo empregado, exímio em
dança; e, enquanto ele ia buscar o funcionário, disse Pancome a Marmeleiro:
-- Você sabe assoviar, major?
O secretário estava sempre disposto a responder afirmativamente ao visconde e não
se deteve um minuto:
-- Sei, senhor visconde.
-- Bem, disse Pancome, assovie aí uma valsa.
A "dama" já tinha chegado e Marmeleiro agora hesitava.
-- Não sabe? indagou o ministro severamente.
-- Só sei as "Laranjeiras".
-- De quem é isso? perguntou Pancome.
-- É do Hamélio.
-- Não é lá muito elegante, considerou o visconde, mas... serve, serve!
Marmeleiro começou a assoviar com todo o recato que o lugar exigia -- fiu, fiu,
fiu... -- e os dois dançaram com todas as cerimônias e ademanes dignos de gabinete tão
diplomático e do respeito que merecia a presença daquele alto herói ministerial. Pancome
verificou com um júbilo paternal que o tal Sune continuava a ser uma maravilha! Que soberbo
amanuense ia ele ser! Bendita Bruzundanga que produzia daquilo!
Acabaram de valsar ao som do melodioso assovio de Marmeleiro, e o visconde falou,
então, com mansuetude, ao candidato:
-- Descanse um pouco, meu filho; e, depois, escreva-me uma carta ao ministro de
Interior sobre a necessidade da Bruzundanga se fazer representar no Congresso de
Encaixotamento de Pianos em Seul.
O lindo Wolfe esteve a pensar um pouco e retrucou titubeando:
-- Vossa Excelência compreende que... Eu! De uma hora para outra... Compreende
Vossa Excelência que não tenho prática... Com o tempo... Mais tarde...
Era só redigir cartas o que ele não sabia; mas, sendo elegante, bonitinho, bom
dançador, tinha todas as boas qualidades para um aperfeiçoado amanuense do extraordinário
Pancome.
Tendo em vista as necessidades da representação da Bruzundanga, o visconde
nomeou-o logo, sem detença alguma. Foi uma acertada nomeação, e sábia, que veio provar o
quanto são tolos os regulamentos e as leis que exigem dos amanuense a vetusta ciência de
saber redigir cartas.
Se não fosse um herói, uma notabilidade universal o Ministro, talvez o galante Sune
não tivesse sido aproveitado e os estrangeiros não teriam uma favorável idéia da boniteza dos
homens da Bruzundanga; mas era, felizmente, e pôde, portanto, pôr de parte as tolas
exigências legais, e o país, com tal aquisição para o seu funcionalismo, adiantou um século.
É verdade que o Marechal Soult, duque da Dalmácia, e Guizot que em celebridade e
notoriedade universal talvez não invejassem as de Pancome, foram ministros de França, e, ao
que consta, nunca desrespeitaram ostensivamente as leis do seu tempo. Isto aconteceu em
França; mas na Bruzundanga as cousas se passam de outro modo e aquele país só tem ganho
com tal proceder, como acabamos de ver.


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Feito amanuense, aprendeu logo a copiar minutas e, em menos de seis anos, Sune, o
tal da carta, acabou eleito, por unanimidade, membro da Academia de Letras da
Bruzundanga.
Ficou sendo o que aqui se chama -- um "expoente".


           XXII
      Notas soltas


UM anúncio de livraria, na Bruzundanga:
"Acaba de aparecer o extraordinário romance -- Meu caro senhor..., de Dona Adhel
Karatá (pseudônimo de Hiralhema Sokothara Lomes, filha do grande poeta e escritor
Sokothara Lomes, cujas assombrosas glórias literárias ela continua com muito brilho, e irmã do
fino estilista e elegante parlamentar Carol Sokothara Lomes). À venda, etc., etc."
         ***
Lá, na Bruzundanga, os Mandachuvas, quando são eleitos, e empossados, tratam
logo de colocar em bons lugares os da sua clientela. Fazem reformas, inventam repartições,
para executarem esse seu alto fim político.
Há, porém, dous cargos estrictamente municipais e atinentes à administração local da
capital da Bruzundanga, que todos os matutos amigos dos Mandachuvas disputam. Os
Mandachuvas, em geral, são do interior do país. Estes cargos são: o de Prefeito de polícia e o
de Almotacé-mor da cidade. Não só eles são rendosos, pelos vencimentos marcados em lei,
como dão direito a propinas e outros achegos.
O de chefe de polícia rende, na nossa moeda, cerca de vinte contos por ano, só nas
taxas cobradas às mulheres públicas; o de Almotacé-mor da cidade, esse então não se fala...
Sendo, assim, lugares em que se pode enriquecer, não faltam doutores da roça que os
queiram e empreguem todas as armas para obtê-los.
Eles mal conhecem a cidade. Se a visitaram ou se mesmo residiram nela, nunca lhes
foi possível passar das ruas principais e daquela em que estiveram morando; de forma que lhe
ignoram as necessidades, os defeitos a corrigir, a sua história, a sua economia e as queixas de
sua população.
Houve um prefeito de policia que, vindo diretamente da província das Jazidas para a
sua prefeitura em Bosomsy, nada sabia da cidade, nem mesmo as ruas principais. Metódico,
econômico, por estar muito preocupado em desagravar as suas propriedades, de hipotecas, nos
primeiros meses de sua gestão limitava-se a ir de casa para a Prefeitura no seu automóvel
oficial, e voltar dela para a sua residência, também no seu automóvel burocrático.
Certo dia cismou em percorrer, a pé, um dos mais centrais boulevards da cidade. Esta
recente via pública corfava muitas outras estreitas da antiga cidade e, em todas as esquinas, ele
encontrou os urbanos (guarda civis) nos seus postos. Todos estes modestos policiais da cidade
o cumprimentavam respeitosamente e o Prefeito ficou muito contente com a sua
administração. Chegou, porém, em um dado cruzamento de rua donde, de uma estreitinha,
tanto da direita como da esquerda, saíam e entravam magotes de povo. Que reboliço será esse?
pensou ele. Será uma greve? Um motim? Que será?
O prefeito, assustado, medita logo providências, quando se lembra de pedir ao
urbano explicações diretas, sem ir pelos canais competentes:
-- Que quer dizer tanto povo aí, nessa rua? perguntou ele esquecido da celestial altura
em que estava.
-- Não há nada, senhor prefeito. É sempre assim, acudiu o urbano, levando a mão ao
boné.


[Linha 3000 de 3733 - Parte 4 de 4]


-- Como?
-- Vossa Excelência não sabe que esta é a rua mais transitada da cidade, e que é a
antiga Rua do Desembargador?
O prefeito não conhecia, senão de ouvido, a rua mais célebre do país, dentre todas as
ruas célebres das suas principais cidades.
Com um Almotacé-mor da cidade, deu-se um caso quase semelhante. Este arconte
tinha nascido na província dos Bois, e, apesar de viver desde há muitos anos na capital da
Bruzundanga, pouco a conhecia. Quando foi provido no seu cargo, quis fazer em horas o que
não havia feito em anos. Tomou o automóvel oficial (certamente) e mandou tocá-lo para os
arredores de Bosomsy. Admirou-se muito de que não houvesse por eles, matadouros de gado
bovino, pois nos da sua pequena, pequeníssima cidade natal, os havia em quantidade. Não viu
senão essa falta e deixou de ver as terras abandonadas, incultas, as estradas esburacadas, terras
em que um bom Almotacé ainda podia, com proveito, animar o plantio de árvores frutíferas,
hortaliças, legumes e a criação de pequeno gado, na zona rural.
Com essa decepção na alma, pois não podia admitir que uma cidade não tivesse nos
arredores matadouros, para o fabrico da carne salgada, resolveu certo dia visitar as
dependências da sua repartição. Chegou ao arquivo. O arquivista, que era zeloso e conhecia
bem a história da cidade, prontificou-se a mostrar-lhe os documentos curiosos da vida passada
da linda capital:
-- Vossa Excelência vai ver as atas das sessões do Senado da Câmara, que...
Eram documentos escritos dos mais antigos, não só da história da cidade, como da
do país inteiro; mas o Almotacé, com grande surpresa de toda a comitiva, exclamou amuado:
-- Como? O quê?
-- ...as atas do Senado da Câmara, Excelência.
-- Qual! Senado é uma cousa e Câmara é outra. Como Senado da Câmara? Que
embrulho? Cada um se governa por si... A Constituição...
-- Mas...
-- Não tem mas, não tem nada. Mande o que é do Senado, para o Senado; e o que é
da Câmara, para a Câmara.
Um grande filósofo afirmou que, para bem se conhecer uma instituição, uma ciência,
um país, era necessário saber-lhes a história; e ninguém, penso, pode admitir que se possa
administrar bem qualquer coisa sem a conhecer perfeitamente.
Os administradores de Bosomsy nada conhecem, como já disse, da cidade, cujos
destinos vão reger e cuja vida vão superintender. Exemplifico.
Um Prefeito de polícia, como lhes contei, não lhe conhecia a rua principal; e um
Almotacé-mor, encarregado da administração geral do muicípio, não lhe conhecia a natureza
de suas produções nem a sua história, como ficou contado. Ele não sabia que a antiga Câmara
dos Edis chamava-se -- Senado da Câmara.
Como estes muitos outros se repetem na administração da capital.
   * * *
Via eu todos os dias passar na rua principal de Bosomsy um sujeito cheio de
imponência e ademanes fidalgos; perguntei a um amigo:
-- Quem é aquele? É algum duque? É marquês?
-- Qual! E um tabelião.
  * * *
"O  Senhor F. de Tal, redator da Warkad-Gazette, contratou casamento com a
Senhorita Hilvia Kamond, filha da viúva Almirante Bartel Kamond", informava um jornal.
É caso de perguntar: que diabo de cousa é esta -- "viúva almirante"? Por que a noiva
não é logo e simplesmente filha do falecido almirante?
  * * *


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-- Quem é aquele sujeito que ali vai?
-- Não lhe sei o nome. Sei, porém, que vive muito bem e é o marido da Klarindhah.
  * * *
-- O doutor Sicrano já escreveu alguma coisa?
-- Por que perguntas?
-- Não dizem que ele vai ser eleito para a Academia de Letras?
-- Não é preciso escrever coisa alguma, meu caro; entretanto, quando esteve na
Europa, enviou lindas cartas aos amigos e...
-- Quem as leu?
-- Os amigos, certamente; e, demais, é um médico de grande clínica. Não é bastante?

Sobre o teatro

TENDO lido na Warkad-Gazetre uma notícia elogiosa da estréia da revista "Mel de
Pau", no Teatro Mundhéu, lá fui uma noite. Quando entrei já o espetáculo tinha começado e
uma dama, em fraldas de camisa, fumando um cigarro, cantava ao som de uma música
roufenha:
   Eu hei de saber
  Quem foi aquela
  A dizer ali em frente
  Que eu chupava
  Charuto de canela.

Por aí os pratos estridulavam, o bombo roncava e a orquestra iniciava alguns
compassos de tango, ao som dos quais a dama bamboleava as ancas As palmas choviam e,
quase sempre, a cantora repetia a maravilha, que tanto fazia rir a platéia.
Na noite seguinte, passando pelo "Harapuka-Palace", li no cartaz: "Todo o serviço",
revista hilariante, em três atos, etc.
Entrei. No palco uma dama, em fraldas de camisa, fumando um cigarro, cantava
acompanhada de uma música rouca:
   Eu hei de saber
  Quem foi aquela
  A dizer ali em frente
  Que eu chupava
  Charuto de canela.

Acabando os pratos eram feridos, o bombo trovejava, a música inteira iniciava uns
compassos de "maxixe" e a dama, com as mãos nos quadris, bamboleava as ancas. Risos,
palmas e o portento era repetido.
Interessei-me por tão variado teatro e foi com agrado que em certa noite, muito
próxima destas duas últimas, aceitei um convite para ir ao "Mussuah Theatre". Lá dei com uma
outra dama, em fraldas de camisa, fumando e cantando, sob a direção da batuta do maestro:
   Eu hei de saber
  Quem foi aquela
  A dizer ali em frente
  Que eu chupava
  Charuto de canela.

Risos, palmas, pratos, chocalhos, bombos; a música iniciava alguns compassos, e a
dama remexia bem os quadris. Tratava-se da revista "Está pra tudo".


[Linha 3100 de 3733 - Parte 4 de 4]


Assim, fui a três ou quatro teatros e sempre dei com uma dama a cantar esta cousa
tão linda:
 Eu hei de saber
 etc., etc., etc.

   Sobre os literatos


-- QUANTAS cartas tens aí! disse-lhe eu ao vê-lo abrir a carteira para tirar uma nota
com que pagasse a despesa.
-- São "pistolões".
-- Pra tanta gente?
-- Sim; para os críticos dos jornais e das revistas. Não sabes que vou publicar um
livro?


 Sobre os jornais


NOVIDADES telegráficas sensacionais:
"Cocos, 2 -- Foi aposentado o Primeiro Escriturário da Intendência F. (A, A.),
Correio Vespertino, de 3-6-07."
"Caranguejos, 22 -- Os padres maristas comemoraram ontem com grandes festas o
centenário da fundação da respectiva ordem (J. C., ed. t., de 22-6-17)."
"Guarabariha, 22 -- Foi desligado do quadro da administração dos Correios daqui o
praticante de segunda classe Virgílio César, por ter sido removido para os Correios de Santa
Catarina.
-- Chegaram a esta capital os doutores Ascendino Cunha e Guilherme Silveira (J. C.,
ed. t., de 22-6-17)."


Erudição


"COSTUMAVA Tito Lívio dizer que tinha ganho o seu dia sempre que lhe era dado
realizar um benefício." (Correio Matutino, de 2-11-13).
Tito Lívio foi imperador?
"E é o motivo dessa antecipação que está sendo explicado, agora, nos jornais da
Fortaleza, pelos entendidos na matéria, um dos quais acusa como razão desse desequilíbrio a
abertura do canal de Panamá, que pôs em contato duas grandes massas d'água de nível
diferente." (O Himparcial, de 12-11-15).
A que fica reduzida a tal história do equilíbrio dos líquidos em vasos comunicantes?
Pobre Ganot, quer o grande quer o pequeno!


Sobre a administração


"A extração deste combustível na América do Sul se eleva, contudo, a mais de
1.500.000 toneladas, produzindo o México 500.000 toneladas e o Chile o restante" (Relatório


[Linha 3150 de 3733 - Parte 4 de 4]


oficial sobre -- A Indústria Siderúrgica no Mundo, pelo general F. M. de S. A., pág. 198)
O México na América do Sul? Que terremoto!
Coisas maravilhosas de um tradutor burocrático:
1.o) arbustos de serra (arbrisseaux de serre)
2.o) bilhetes de bilhar (billes de billard)
3.o) Tecidos de... cânhamo ou de ramia (ramie)
4.o) fetos de serra (fougères de serre)
5.o) berloques, colorados... (breloques, coloriées),
Todas estas e muitas outras lindezas semelhantes vieram publicadas no D.O. da
Bruzundanga, em 23 de março de 1917: e o ato era assinado pelo grande
Ministro -- Kallokeras.
"A seleção nas repartições é feita inversamente de forma que os empregados mais
graduados são os mais néscios e inscientes. Houve quem propusesse para corrigir tal defeito
que se mudasse a hierarquia burocrática: o cargo de diretor passava a ser o primeiro da escala e
o de praticante, o último."

            No gabinete do ministro


-- O senhor quer ser diretor do Serviço Geológico da Bruzundanga? pergunta o
Ministro.
-- Quero, Excelência.
-- Onde estudou geologia?
-- Nunca estudei, mas sei o que é vulcão.
-- Que é?
-- Chama-se vulcão a montanha que, de uma abertura, em geral no cimo, jorra
turbilhões de fogo e substâncias em fusão.
-- Bem. O senhor será nomeado.
  * * *
Pancome, quando se deu uma vaga de amanuense na sua secretaria de Estado, de
acordo com o seu critério não abriu concurso, como era de lei, e esperou o acaso para
preenchê-la convenientemente.
Houve um rapaz que, julgando que o poderoso Visconde queria um amanuense chic e
lindo, supondo-se ser tudo isso, requereu o lugar, juntando os seus retratos, tanto de perfil
como de frente. Pancome fê-lo vir à sua presença. Olhou o rapaz e disse:
-- Sabe sorrir?
-- Sei, Excelentíssimo Senhor Ministro.
-- Então mostre.
Pancome ficou contente e indagou ainda:
-- Sabe cumprimentar?
-- Sei, Senhor Visconde.
-- Então, cumprimente ali o Major Marmeleiro.
Este major era o seu secretário e estava sentado, em outra mesa, ao lado da do
Ministro, todo ele embrulhado em uma vasta sobrecasaca.
O rapaz não se fez de rogado e cumprimentou o major com todos os "ff" e "rr"
diplomáticos.
O Visconde ficou contente e perguntou ainda:
-- Sabe dançar?
-- Sei. Excelentíssimo Senhor Visconde.
-- Dance.


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-- Sem música?
  O visconde não se atrapalhou. Determinou ao secretário:
-- Marmeleiro, ensaia aí uma valsa.
-- Só sei "Morrer sonhando" (exemplo).
-- Serve.
O candidato dançou às mil maravilhas e o Visconde não escondia o grande
contentamento de que sua alma exuberava.
Indagou afinal.
-- Sabe escrever com desembaraço?
-- Ainda não, doutor.
-- Não faz mal. O essencial, o senhor sabe. O resto o senhor aprenderá com os outros.
E foi nomeado, para bem documentar, aos olhos dos estranhos, a beleza dos homens
da Bruzundanga.


     Sobre os sábios
    (a desenvolver)

OS engenheiros, tanto os civis como os militares, mais estes que aqueles, julgam-se
geômetras. Não o são absolutamente; os melhores são simples professores.
  * * *
Os médicos da Bruzundanga imaginam-se sábios e literatos.
Pode-se afirmar que não são nem uma cousa nem outra.
  * * *
É sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros; e quanto mais de
país desconhecido, mais sábio é. Não é, como se podia crer, aquele que assimilou o saber
anterior e concorre para aumentá-lo com os seus trabalhos individuais. Não é esse o conceito
de sábio que se tem em tal pais.
Sábio, é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros.
Houve um que, quando morreu, não se pôde vender-lhe a biblioteca, pois todos os
livros estavam mutilados. Ele cortava-lhes as páginas para pregar no papel em que escrevia os
trechos que citava e evitar a tarefa maçante de os copiar.
    * * *
Há mais de século que se estudam nas suas escolas superiores, as altas ciências;
entretanto os sábios da Bruzundanga não têm contribuído com cousa alguma para o avanço
delas.
Em toda a parte, os sábios, de qualquer natureza, são homens de recursos medianos,
modestos, retraídos, pouco mundanos, mesmo quando ricos. Na Bruzundanga, não; os sábios
são nababos, têm carros e automóveis de luxo, palácios; freqüentam teatros caros, durante
temporadas completas; dão festas suntuosas nos seus hotéis, etc., etc.
      * * *
Não há médico afreguesado que não seja considerado um sábio pela gente da
Bruzundanga, e, para firmar tal reputação, não fabrique uma compilação escrita em sânscrito.
O médico sábio não pode escrever em outra língua que o sânscrito. Isto lhe dá foros de literato
e aumenta-lhe a clínica.
Com a vida dos sábios da Bruzundanga ninguém poderia escrever Os Mártires da
Ciência. Têm eles a precaução preliminar de inaugurarem a sua sabedoria com um casamento
rico.




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 Sobre a música


A música, na Bruzundanga, é, em geral, a arte das mulheres. É raro aparecer no país
uma obra musical.

  Sobre a indústria


A indústria nacional da Bruzundanga tem por fim espoliar o povo com os altos
preços dos seus produtos. É nacional, mas recebe a matéria-prima, já em meia manufatura, do
estrangeiro.

 A última nota solta

A habilidade dos governantes da Bruzundanga é tal, e com tanto e acendrado
carinho velam pelos interesses da população, que lhes foram confiados, que os produtos mais
normais à Bruzundanga, mais de acordo com a sua natureza, são comprados pelos estrangeiros
por menos da metade do preço pelo qual os seus nacionais os adquirem.


 OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNGANGAS


      As letras na Bruzundanga

 "A solenidade que aqui nos reúne e para a qual foram
convocados os poderes do Céu e da Terra, e o mar, é de tanta
magnitude que a não podemos avaliar senão rastreando, através
das sombras do Tempo, a sua projeção no Futuro."

Coelho Neto.
Discurso na inauguração da piscina do Fluminense F.C.


O meu livro de viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga está a sair
das mãos do editor carioca Jacinto Ribeiro dos Santos; por isso nada lhe posso adicionar,
senão quando estiver em segunda edição, caso tenha ele essa felicidade.
Nesse meio tempo, porém, tenho recebido notícias de lá que, sem implicar numa total
modificação dos costumes e hábitos daquele notável povo e daquela curiosa terra, observados
já por mim, revelam, entretanto, pequenas alterações interessantes que não devem ficar sem
registro. Uma delas é a que se está passando com os seus literatos e poetas.
Em todos os tempos os homens de letras, maus ou bons, geniais ou medíocres, ricos
ou pobres, glorioso ou ratés, sempre se julgaram inspirados pelos Deuses e confabulando
intimamente com eles. A vida dos escritores, poetas, comediógrafos, romancistas, etc., está
cheia de episódios que denunciam esse singular orgulho deles mesmo e da missão da arte de
escrever a que se dedicam. Todos eles se deixariam morrer à fome ou de miséria, antes de
transformar a sua Musa em passatempo de poderosos e ricaços. Entregaram essa função aos
bufões, aos histriões, aos bobas da corte, etc.
Mesmo quando um duque ou um príncipe tinha um poeta a seu soldo, o estro dele só


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era empregado para solenizar os grandes acontecimentos privados ou públicos em que o duque
ou o príncipe estivesse de qualquer forma metido. Se se tratasse de um batizado na família, de
um casamento, do aniversário da duquesa, de uma vitória ganha pelo príncipe, de sua
nomeação para embaixador junto à corte de Grão-Mongol, sim! O poeta palaciano tinha que
puxar a mitologia do tempo, escrever uma ode, um epinício, um ditirambo ou mesmo um
simples soneto, conforme fosse a natureza da festa. Mesmo para as mortes havia a elegia com
todas as suas regras marcadas na retórica e poética daqueles tempos de reis, marqueses e
duques.
Esses fidalgos mesmo aceitavam de bom grado o orgulho profissional dos seus
poetas attachés. Alguns destes mereciam até homenagens excepcionais, como um tal Alain
Chartier, poeta francês do século XV. Conta-se que a delfina Margarida da Escócia, passando
com o seu séqüito de damas e cavalheiros de honor, por uma sala em que estava cochilando o
poeta, não trepidou em beijá-lo na boca diante de todo o seu acompanhamento. A mulher do
príncipe que foi mais tarde o sombrio e velhaco Luís XI de França justificou o ato dizendo que
apesar do desgracioso físico de Alain, a encerrar, contudo, tão belo espírito, daquela boca
tinham saído tantas palavras douradas, que ele merecia aquela sua imprevista homenagem. As
crônicas do tempo contam esse episódio que me parece não ter eu adulterado e, além deste,
muitos outros interessantes, em que se mostra até que ponto os homens de pena eram prezados
pelos poderosos de antanho, e como eles tinham em grande conta a sua missão de troveiros e
trovadores.
Na Bruzundanga, até bem pouco, era assim também. A sua nobreza territorial e
agrícola estimava muito, a seu jeito, os homens de inteligência, sobremodo os poetas, aos quais
ela perdoava todos os vícios e defeitos Essa fidalguia à roceira daquele país era assim
semelhante aos nossos "fazendeiros", antes da lei de 13 de maio; e poeta, ou mesmo poetastro,
que aportasse nas suas fazendas, que lá são chamadas -- "ampliúdas" -- tinha casa, comida,
roupa nova, quando dela precisasse, e lavada toda a semana, podendo demorar-se no
latifúndio o tempo que quisesse, e fazendo o que bem lhe parecesse, desde que nada tentasse
contra a decência e a honra da família. Por agradecimento, então, em dia festivo da família ou
da religião, ao jantar cerimonioso e votivo, o vate recitava uma poesia inédita, alusiva ou não
ao ato, e tomava uma grande e alegre carraspana.
Houve um até -- uma espécie do nosso Fagundes Varela -- que é ainda lá muito
célebre, recitador nas salas, e cujas obras têm tido muitas edições que viveu anos inteiros em
peregrinações de "ampliúda" para "ampliúda", sem saber o que era uma moeda, por mais
insignificante que fosse de valor, comendo, bebendo, fumando, sem que nada lhe faltasse, a
não ser dinheiro de que ele mesmo não sentia nenhuma necessidade. Tinha tudo...
Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução social e, logo em seguida, uma
política, deslocaram essa boa gente da fortuna, e muitos deles, até, dos seus domínios, que
vieram a cair nas mãos de aventureiros recentemente chegados à terra ou, quando nascidos
nela, eram de primeira geração, descendendo diretamente de imigrantes recentes cujo único
pensamento era fazer fortuna do pé para a mão, cheios de uma avidez monetária e
inescrupulosa que transmitiram decuplicada aos filhos, e logo os lindos costumes de antiga
nobreza agrária se perderam. Os poetas foram postos à margem e não tiveram mais nem
consideração nem desprezo. Era como se não existissem, como se fosse possível isso, seja em
sociedade humana, fora de qualquer grau de civilização que ela esteja.
Aos poucos, porém, os parvenus viram bem que era preciso pôr um pouco de beleza e
de sonho nas suas existências de mascates broncos e ferozes saqueadores legais. Deram em
pagar sonetos que festejassem o nascimento dos filhos e elegias que lhes dessem lenitivo por
ocasião da morte dos pais. Pagavam bem e pontualmente, como hoje se pagam as missas de
sétimo dia aos sacerdotes que oficiam nelas, ou em outras cerimônias menos tristes.
Alguns, porém, quiseram mais ainda e, tendo notícias que os nobres feudais, de


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espada e cavalo de batalha encouraçado e intrépido, tinham os seus vates e trovadores, nos
seus castelos e manoirs, pensaram em tê-los também, pagando-os a bom preço, a fim de que
contribuíssem com as suas "palavras douradas" para o brilho de suas festas.
Um desses milionários, caprichoso e voluntarioso, quis ir mais longe ainda. Tendo
construído nos fundos de sua chácara, situada em um pitoresco arrabalde da capital da
República da Bruzundanga, um tanque imenso, para dar banho aos cavalos de raça das suas
opulentas cavalariças, teimou que havia de inaugurá-los soberbamente, com notícias nos
jornais, bênçãos religiosas e um discurso feito pelo maior literato de Bruzundanga, ou tido
como tal, enfim, pelo mais famoso.
Não posso garantir que o Creso tivesse pago ao celebérrimo poeta ou que este lhe
devesse algum dinheiro; mas o certo é que, desprezando a dignidade de sua Arte e a Glória, a
reputação literária mais absorvente e mais tirânica da Bruzundanga, pescou latim, grego, a
cabala judaica, o Ramâiana, os Evangelhos e inaugurou com um discurso assim pomposo, e
grandiloqüente, no estilo hugeano, o banheiro dos ginetes do multimilionário Har-al-Nhardo
Ben Khénly.
O altitudo!

 O Parafuso, São Paulo, 12-3-1919.


        A arte

O país da Bruzundanga, hoje República dos Estados Unidos da Bruzundanga,
antigamente império, tem-se na conta de civilizado e, para isso, entre outras coisas, possui
escolas para o ensino de belas-artes.
Naturalmente dessas escolas saem competências em pintura, escultura, gravura e
arquitetura que devem ter mais ou menos talento; entretanto, ninguém lhes dá importância,
seja qual for o seu mérito.
Se não conseguem lugares de professores, mesmo de desenho linear, nenhum favor
público ou particular recebem da sua nação e do seu povo.
Houve um até, pintor de mérito, que se fez fabricante de tabuletas para poder viver;
os mais, quando perdida a força de entusiasmo da mocidade, se entregam a narcóticos,
especialmente a uma espécie da nossa cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos de
arte e glória dos seus primeiros anos.
Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os pouco audazes, aos quais os jornais
nem notícia dão dos livros.
Conheci um dos maiores, de mais encanto, de mais vibração, de mais estranheza,
que, apesar de ter publicado mais de dez volumes, morreu abandonado num subúrbio da
capital da Bruzundanga, bebendo sodka com tristes e humildes pessoas que nada entendiam
de poesia; mas o amavam.
A gente solene da Bruzundanga dizia dele o seguinte: "E um javanês (equivalente ao
nosso "mulato" aqui) e não sabe sânscrito".
Essa gente sublime daquele país é quase sempre mais ou menos javanesa e, quase
nunca, sabe sânscrito.
Todo estímulo se vai e uma arte própria lá não se cria por falta de correspondência
entre o herói artístico e a sua sociedade.
Não é que ela não tenha necessidade dessa atividade do espírito humano, tanto assim
que os jornais da Bruzundanga vêm pejados de notícias, encômios, ditirambos às
mediocridades mais ou menos louras do que as de lá.
Tenho aqui adiante dos olhos um jornal da Bruzundanga que trata de um poeta da


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Austrália, cujos melhores versos são como estes:
     Fui lá em cima ver meu Deus;
     Voltei triste, por nada encontrar.
     Mas se tiver forças hei de voltar
     Para vê-lo de novo outra vez.
A notícia está assinada com o nome do autor e justifica os elogios que lhe faz, com
estas palavras, cuja aplicação devia caber aos seus camaradas e contemporâneos, para
animá-los a fazer grandes coisas. Ei-las:
"Nada mais agradável e, sobretudo, nada mais útil que aplaudir aos espíritos que
apenas desabotoam, ainda cheios do calor dos primeiros sonhos, ainda ressoantes da vibração
dos primeiros vôos. Para eles não deve ser a crítica um instrumento frio, insensível, com as
asperezas de uma medida certa, senão uma voz de estímulo, uma alentadora voz que embale o
coração e penetre, carinhosamente, a inteligência que reponta. O comentário, sem ser
exagerado, para não se tornar prejudicial, sem ser frívolo, para não se transformar em elemento
nocivo, em fonte de erros e vícios, deve procurar os aspectos mais significativos do
temperamento que surge, apontando, com amoroso intuito, as insuficiências, as indecisões da
primeira hora, as dúvidas e as hesitações peculiares aos que começam. Geralmente, porém, não
costumam os críticos profissionais usar de tais cautelas antes preferem exercer o seu mister,
com rudeza e impassibilidade, confundindo autores novos, sem responsabilidades literárias
ainda firmadas, para os quais o maior rigor é brandura."
É engraçado que seja só maior rigor a brandura quando se trata de poetas da
Austrália; mas quando se trata de vates da Bruzundanga a aior brandura é o rigor.
Não é só assim em poesia. Nas artes plásticas, na música, tudo é assim.
Chega à capital da Bruzundanga um pintor que se diz pintor e espanhol, a quem
ninguém nunca viu ou conheceu, e logo os críticos dos jornais, viajados e lidos, finos e limpos
de colarinhos, logo dizem: "Este Dom Tuas y Trias é Velázquez, é Zurbarán, é o Greco, é
Goya, etc., etc."
Os quadros que ele traz, talvez, não sejam dele; são de uma banalidade de concepção
e de uma infantilidade de execução lamentáveis; mas os tais homens lidos, viajados, que
desprezam os javaneses (os mulatos de lá), afirmam que o homem é extraordinário.
Dito isto, logo todos os bobos ricos, enriquecidos com o tráfico do ópio e outras
maléficas, a fim de imitarem os príncipes da Renascença -- já se viu! -- correm à exposição e
compram os quadros a preço de ouro, enquanto os pobres diabos naturais ou vivendo na
Bruzundanga, que são conscienciosos do seu mister, morrem em ofícios humildes ou de sodka.
E assim o gosto da gente superior da Bruzundanga, gente feita de doutores e
aventureiros, ambas dadas à chatinagem e à veniaga, desde os primeiros caçando casamentos
ricos e os segundos na cavação comercial e industrial, sem ter tido tempo para se deter nessas
coisas de pensamento e arte.
Quando ficam ricos, estão completamente embotados, para não dizer mais...
Houve um pintor viriático que veio com uns quadros dramáticos. cenográficos para a
Bruzundanga, precedido de uma fama de todos os diabos, a ponto de um guarda-livros,
Filinto não hesitar em dizer que era Leonardo Da Vinco.
Quando publicar estas notas em volume, que está a aparecer em edição de Jacinto
Ribeiro dos Santos, meu bom amigo e camarada, hei de juntar uma reprodução do retrato
eqüestre de um rei dele, o pintor, que é o modelo mais perfeito do maneirismo, do apelo aos
uniformes, aos chamalotes, às plumas que conheço, em pintura.
Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto, poderei desenvolvê-las
se os interessados me provocarem. Escrevo em dia oportuno.

 ABC, Rio, 7-9-1919.


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  Lei de promoções
 (Crônica Militar)
O que tem até agora regulado as promoções, quer no exército e armada, quer na
polícia e guarda nacional, é o arbítrio, o capricho e a ignorância cega dos elementos da
genesíaca cartesiana, que os metafísicos definem erroneamente como aplicação da álgebra à
geometria.
No semi-século genial e fecundo que medeou entre Descartes e Leibnitz, muita
conquista útil foi obtida, no terrena da análise transcendente, mesmo antes da sua completa
sistematização pelo gênio do último daqueles filósofos.
Fermat, Cavallieri, Roberval e outros muitos concorreram para o estabelecimento
definitivo do instrumento leibnitziano -- uma imortal conquista científica, para obtenção da
qual o espírito humano estava assaz maduro, tanto assim que Newton, pela mesma época,
apresentou o seu cálculo das fluxões.
Todo esse lento e paciente trabalho que absorveu o espírito de tantos grandes homens
da Humanidade, obriga-nos a dispensar um culto acendrado à memória deles, por isso lhes cito
aqui os nomes, ao lembrar as suas descobertas que muito lucraram com o rigor e a justiça das
promoções nos batalhões dos colégios equiparados e linhas de tiro.
Nestas unidades, o acesso ao posto imediato é determinado por um processo
rigorosamente científico, de um rigor verdadeiramente astronômico.
É preciso estendê-lo ao resto das forças armadas.
Suponhamos um sargento que quer ser alferes. Pega-se o candidato e faz-se engolir a
seguinte beberagem:

     Ácido azótico ...........................................   5  g.
     Oxalato de potássio ...................................  7  g.
     Magnésia calcinada ..................................   3  g.
     Bicloreto de mercúrio ...............................   2  g.
     Água destilada .........................................  100 g.

Deve-se dar ao paciente tudo isto de uma só vez. Se o sujeito não bater a bota,
examinam-se as fezes com o papel tournesol, que, no caso de avermelhar-se, indica que o tipo
pode ser alferes. No contrário, não.
Isto não tem nada que ver com Leibnitz, nem com o seu cálculo infinitesimal; mas
não me ficava bem deixar de citar o imortal filósofo e a sua magna obra, podendo, se assim
não procedesse, ser confundido com um qualquer legislador metafísico e anarquizado, por aí,
que não é senhor do saber integral da humanidade.
A dosagem que indiquei, deve variar quando se tratar de polícias, guardas nacionais
e oficiais de fazenda. Para os primeiros carregar no ácido azótico, para os segundos e terceiros,
dobrar a dose de bicloreto de mercúrio.
Com o emprego deste método que é rigorosamente científico, o governo pode ter, em
breve, um corpo de oficiais perfeitamente selecionados pela Morte e um povoamento rápido e
instantâneo dos cemitérios -- o que, afinal, é o fim natural de todas as guerras a que os oficiais,
sejam desta ou daquela corporação, são obrigados a servir com todos os riscos e vantagens.
Há, porém, o método empírico que é mais humano e compatível com o grau de
adiantamento a que chegou a nossa humanidade atualmente. Não há morte, nem sangue, nem
bravura, nem salvas.
Este método é muito usado na guarda nacional e poucas outras entidades
(vocabulário do football) militares. Vamos ver em que consiste.
Um tal método tem por princípio básico só admitir à promoção, oficiais que nunca


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tenham visto soldados, fortalezas, quartéis, etc.
Por esse processo, estão fatalmente eliminados todos os oficiais que hajam servido
em guarnições longínquas.
O mais relevante conhecimento exigido, para as promoções de acordo com esse
processo empírico, é o de uma perfeita sabedoria nas marcas de papel de ofícios, de grampos,
colchetes e alfinetes, para papéis. Contam-se como ultrameritórios os serviços pacíficos em
linhas telegráficas, em leitura de pluviômetros, em conversas com bugres filósofos e em
construção de estradas de ferro que não acabam mais.
Em caso de merecimento igual, entre os candidatas, promovido será o que tiver
melhor "pistolão".
Para isso, o oficial precavido não se deve afastar da capital do país; e, nela, sempre
cultivar a amizade de poderosos políticos e pessoas de seu amor e amizade; e é, por isso, que
os oficiais que servem em guarnições longínquas, fronteiras, etc., não podem entrar na lista das
promoções, determinação que se subentende nesse sistema empírico que a sabedoria dos
tempos consagrou com alguns retoques.
Não falei nas promoções nos bombeiros. Emendo a mão. Nos
bombeiros -- corporação reduzida -- as promoções devem ser feitas em família. É o melhor.
O que acabo de dizer, são como o croquis das minhas idéias sobre promoções nas
classes armadas, sendo que algumas não me pertencem propriamente, antes a todos os
militares, suas mulheres, filhas e noivas. Eis aí. Capitão Ortiz y Valdueza (Do Exército da
Bruzundanga).
Reconheço a rubrica supra e a letra do Capitão Ortiz y Valdueza, do Corpo de
Submarinos do Exército da República os Estados Unidos da Bruzundanga.
(Tenho o sinal público e, à margem, "grátis"), -- O COPISTA.
Careta, Rio, 29-1-21.

Rejuvenescimento
(Crônica Militar)


     "Todas as medidas esperadas para resolver o problema do rejuvenescimento dos
quadros do Exército, das discutidas no Congresso, não conseguiram sair do campo
das discussões.
     Rejuvenescer os quadros não significa somente melhorar o futuro dos oficiais; é
concorrer para que não reine o desânimo, para que seja mantido o ardor profissional.
    Não é possível esperar dum oficial que moireja de seis a oito anos em cada posto,
que ele tenha sempre o mesmo entusiasmo, que a própria idade consegue arrefecer. 
    E com a idade vem naturalmente a diminuição do vigor físico exigido para o
desempenho do árduo trabalho de oficial de tropa."

É assim que se exprime sabiamente um jornal desta cidade. Estamos de pleno acordo
com as opiniões do nosso colega diário; mas julgamos, no nosso humilde parecer, que ele só
encara uma face do problema. É nossa opinião que essa questão de rejuvenescimento, é uma
questão geral e interessa, não só aos militares, como também a outras classes da sociedade.
Que ardor profissional pode ter um carpinteiro que tem cinqüenta anos de idade e
trabalha no ofício desde os dezesseis?
A sua obra há de se ressentir da fadiga dos seus músculos cansados e do desinteresse
que traz a monotonia de fazer durante anos a mesma tarefa. A sociedade perde muito com
isso, pois os seus trabalhos não terão a perfeição que havia nos que executava com trinta anos
de vida.


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Seria inútil repetir exemplos como este, pois eles estão aí aos pontapés, para mostrar o
quanto é indispensável decretar medidas que rejuvenesçam os quadros de todas as profissões.
Para as funções públicas, inclusive as militares, já o célebre filósofo político-militar
dinamarquês, Hans Reykavyk propôs dois métodos para obter o remoçamento dos quadros:
Um, aparente meramente, e de origem feminina; o segundo substancial e
rigorosamente científico.
O primeiro método se baseia nas pinturas, pomadas e massagens. Não há negar que o
seu emprego, quando executado por operador hábil, dá ao indivíduo que a ele se sujeita a
aparência de mocidade; mas é só aparência e não restitui a quantidade de força vital que o
indivíduo perdeu com o correr dos anos.
De resto, ele ia levar para a caserna hábitos de camarim de atriz.
A guerra em si mesma nada tem de teatral; só acham essa cousa nela os pintores de
batalhas que recebem encomendas dos governos, e os literatos da moda.
A guerra em si é uma cousa brutal e horrendamente ignóbil; a única consideração que
rege a batalha, se há uma, está na cabeça de quem a dirige, e isto não é matéria para tela, nem
para páginas literárias, mas notas e riscos numa carta topográfica, em escala conveniente com
convenções adequadas.
Além disto, introduzindo hábitos teatrais no viver guerreiro, iria isso perturbar a ação
dos combatentes, diminuir-lhes a eficiência com a suposição de que deviam tomar belas
atitudes, para obter o aplauso da galeria, distraindo-lhes do verdadeiro objetivo de sua ação
que é dar cabo do inimigo, por fas ou nefas.
Esse sistema de academia de beleza não pode ser adotado, sendo essa também a
conclusão a que chega, depois de exaustiva análise, o grande filósofo dinamarquês que nos
guia nestas despretensiosas notas.
Resta o método científico que se estriba na psicologia experimental e é corrigido pela
sociologia transcendente.
Não posso transcrever aqui todas as considerações que precedem a exposição que o
Senhor Hans Reykavyk faz desse método.
Bastará dizer-lhes que, depois de expor fatos concretos em abundância, ele
estabelece o postulado de que o general deve ser moço; de menos de trinta anos, pois é nessa
idade que os homens têm o máximo de iniciativa.
Saído das escolas militares o oficial será logo general, ganhando como tenente,
depois irá descendo de graduação de forma a chegar aos sessenta como tenente, ganhando
como general.
Eis em linhas gerais o plano de rejuvenescimento dos quadros de oficiais militares, a
que chega o ilustre Reykavyk, após uma análise detalhada das conclusões da psicologia
experimental, convenientemente corrigidas pela sociologia transcendente.
Além de outras vantagens, tem este método a de fazer que os tenentes deixem, por
morte, para as viúvas, filhos, filhas, genros e netos um montepio que porá estes a coberto de
todas as necessidades -- montepio de general.
Pelo seu caráter geral e abstrato, com as necessárias modificações, ele pode
aplicar-se, não só a todas as corporações militares, como também a quaisquer outras civis,
estipendiadas pelo governo.
Não é preciso mais dizer, a fim de pôr em evidência o grande alcance do sistema do
pensador dinamarquês e chamar para ele a atenção do legislativo brasileiro.
Creio que, fazendo isso, cumpro um dos deveres da missão militar de que me acho
incumbido no Brasil.
Capitão Ortiz y Valdueza, do corpo de Submarinos dos Estados Unidos da
Bruzundanga.
Pela tradução do "bengali". -- Lima Barreto -- (Tradutor público ad-hoc).


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Careta, Rio, 19-3-1921.

No salão da marquesa


NA República da Bruzundanga, nunca houve grande gosto pelas cousas de espírito.
A atividade espiritual daquelas terras se limita a uns doutorados de sabedoria equívoca;
entretanto, alguns espíritos daquele Fonkim se esforçavam por dar um verniz esperitual à
sociedade da terra. Escreviam livros e folhetos, revistas e revistecas de modo que,
artificialmente, o país tinha uma certa atividade espiritual.
Notavam todos a falta de salas literárias, de salões espirituais, tais aqueles que tanto
brilho deram ao século XVIII francês, revelando não só grandes escritores e filósofos, mas
também espíritos femininos que, pela sua graça, pelo seu talento de penetração, muito
distinguiram o sexo amável, antes desse feminismo truculento e burocrático que anda por aí.
Consciente desta falta, a Marquesa de Borós, uma senhora de alta estirpe e não
menos alta inteligência, tomou o alvitre de fundar um salão literário.
Ela residia em um grande palácio que se dependurava sobre a cidade capital, do alto
de uma verdejante colina, e nele em certas e determinadas tardes reunia os intelectuais do país.
Em começo, recebeu alguns de valia; mas, bem depressa, os fariseus e simuladores de
talento tomaram conta da sala.
A sua delicadeza e a sua bondade se vira obrigada a receber toda essa chusma de
mediocridades que, sem ter talento nem vocação, se julgam literatos e artistas, como se se
tratasse de condecorações e títulos fornecidos pelo presidente da República do Cunany.
A esse pessoal, acompanhou o equivalente feminino; e era de ver como Cathos fazia
pendant ao farmacêutico Homais; Madelon ao gramático Vaugelas; e Filaminta ao artista
Pèlerin.
Uma sociedade, ou antes: este salão começou a dominar a atividade espiritual do
país; e não havia recompensa do esforço intelectual em que ele não se metesse e até pusesse o
seu veto.
O parecer dele era sempre sobremodo néscio e tolo.
Para uns, ele opinava:
-- O Jagodes receber prêmio -- qual! Um filho natural! Não é possível!
Para outros, ele sentenciava:
-- Não julgo o Fagundes digno de figurar no Grêmio Literário Nacional... Ele não
bebe champagne!
A propósito destoutro, ele dogmatizava:
-- O Bustamante não pode receber a medalha. É verdade que ele tem merecimento;
mas veste-se muito mal...
Essa opinião acabava de ser pronunciada pelo ilustre literato Manuel das Regras, cuja
obra por ser desconhecida era de alto valor, quando, num canto da sala, foi visto um sujeito
mal vestido, relaxado, sujo mesmo, com um todo de homem de outros tempos.
Todos se entreolharam com certo medo, apesar do estranho não ter nenhum ar de
existência sobrenatural.
Um mais animoso resolveu-se a falar ao intruso:
-- Quem é o senhor?!
-- Eu! Eu sou Francisco II, rei da Prússia.
E toda aquela miudeza de gente escafedeu-se por todas as portas e janelas da sala.

Careta, Rio, 5-11-21.


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Outras noticias

DA minha viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga, tenho
publicado, no A.B.C., algumas notas com as quais organizei um volume que deve sair dentro
em breve das mãos do editor Jacinto Ribeiro dos Santos.
Estou fora da Bruzundanga há alguns anos; mas, de quando em quando, recebo
cartas de amigos que lá deixei, dando-me notícias de tão interessante terra.
De algumas vale a pena dar conhecimento ao público que se interessa pela vida
desses povos exóticos e paradoxais.
Diz-me um amigo, em carta de meses atrás, que a Bruzundanga declarou guerra ao
império dos Ogres; mas não mandou tropas para combatê-los ao lado dos outros países que já
o faziam. Tratou unicamente de vender uma grande partida de tâmaras dos seus virtuais
aliados, com o que o intermediário ganhou uma fabulosa comissão.
Outra carta que de lá recebi, mais tarde, conta-me que os governantes da
Bruzundanga resolveram afinal mandar uma esquadra para auxiliar os países amigos que
combatiam os Ogres.
Logo toda a Bruzundanga se entusiasmou e batizou a sua divisão naval de
"Invencível Armada".
Como lá não houvesse um Duque de Medina Sidonia, como na Espanha de Felipe II,
foi escolhido um simples almirante para comandá-la.
A esquadra levou longos meses a preparar-se e com ela, mas em paquete, partiu
também uma missão médica, para tratar dos feridos da guerra contra os Ogres.
Tanto a esquadra como a missão chegaram a um porto intermediário, onde, em
ambas, se declarou uma peste pouco conhecida. Chamado o chefe da comissão médica, este
respondeu:
-- Não entendo disto... Não é comigo... Sou parteiro.
Um outro doutor da missão dizia:
-- Sou psiquiatra.
E não saiu daí.
-- Não sei -- acudiu um terceiro, ao se lhe pedir os seus serviços profissionais -- não
curo defluxos. Sou ortopedista.
Não houve meio de vencer-lhes a vaidade de suas especialidades, de anúncio de
jornal.
Assim, sem socorros médicos, a "Invencível Armada" demorou-se longo tempo no tal
porto, de modo que chegou aos mares da batalha, quando a guerra tinha acabado.
Melhor assim...
Não foram só estas duas cartas que me trouxeram novas excelentes da Bruzundanga.
Muitas outras me chegaram às mãos; a mais curiosa, porém, é a que me narra a
nomeação de um papagaio para um cargo público, feita pelo poder executivo, sem que
houvesse lei regular que a permitisse.
Um ministro de lá muito jeitoso, que andava fabricando em vida, ele mesmo, as
peças de sua estátua, julgou que fazendo uma tal nomeação... tinha já em bronze o baixo
relevo do monumento futuro à sua glória.
Consultou um dos seus empregados que estudava leis e a interpretação delas em
Bugâncio, sabia a casuística jesuítica, além de conhecer as sutilezas da Escolástica, a ponto de
ser capaz de provar com a mesma solidez a tese e a antítese, desde que os interessados em uma
e na outra o retribuíssem bem.
Dizia a lei fundamental da Bruzundanga:


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"Todos os cargos públicos são acessíveis aos bruzundanguenses, mediante as provas
de capacidade que a lei exigir".
O exegeta ministerial, depois de verificar que o papagaio tinha nascido na
Bruzundanga, e era, portanto, bruzundanguense, concluiu, muito logicamente, que ele podia e
lhe assistia todo o direito de ser provido em um cargo público de seu país.
Argumentou mais com Augusto Comte que incorporava à Humanidade certos
animais; com o "artemismo", crença de determinados povos primitivos que se julgam
descendentes ou parentes de tal ou qual animal, para mostrar que o anelo íntimo dos homens é
elevar esses seus semelhantes e companheiros de sofrimentos na terra. Emancipá-los.
A Arte, dizia ele, foi sempre por eles. Citava as esculturas assírias, egípcias, gregas,
góticas que, embora idealizados ou estilizados, denunciavam um culto pelos animais que,
injustamente, chamamos inferiores.
Na arte escrita, para demonstrar o que o sábio consultor vinha asseverando, lembrava
La Fontaine, com as suas fábulas, e modernamente, Julcs Renard, com as suas interessantes
Histoires Naturelles.
Nas modernas artes plásticas, nem se falava, continuava ele. A representação artística
de animais, por meio delas, já constituía uma especialidade.
Foi por aí...
E, de resto, dizia ele quase no fim, quem não se lembra do papagaio de Robinson
Crusoé?
Devemos, portanto, exalçar o papagaio, que é um animal que fala, rematou afinal.
O ministro gostou muito do parecer; julgou dispensável pedir uma lei ao corpo
legislativo que, na Bruzundanga, é composto de duas câmaras: a dos vulgares e dos doutores;
não julgou também necessário avisar os outros papagaios da sua resolução, para que
concorressem e nomeou o do seu amigo Fagundes...
E foi assim, segundo me conta a missiva que recebi, que um "louro" bem falante foi
nomeado arauto d'armas da Secretaria de Estado de Mesuras e Salamaleques da República dos
Estados Unidos da Bruzundanga.

 A.B.C., Rio, 23-11-18.



FIM --- FIM --- FIM


...


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Os Bruzundangas - Lima Barreto - Parte 3 de 4
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