segunda-feira, 16 de julho de 2018

A Pata da Gazela - Parte 3 de 3 - José de Alencar


A Pata da Gazela - Parte 3 de 3 - José de Alencar


Horácio soltou uma risada:

-- Olha, Leopoldo, cá para mim o platonismo em amor seria um absurdo incompreensível se não fosse uma refinada hipocrisia. Esses mesmos que adoram a mulher como um anjo, de que se nutrem senão da contemplação de beleza material que tratas com tamanho desprezo? É possível que uma mulher feia seja amada por aberração do gosto; mas fazer disso uma
regra geral!...


-- Ninguém pretende semelhante coisa. A beleza é um encanto, uma graça, um invólucro da mulher; mas não deve ser exclusivamente a mulher, como a pétala é a flor, e a centelha é a luz.

-- Sofisma! Tira a beleza à mulher amada e verás o que fica; o mesmo que fica da flor que murcha e da chama que se apaga: pó ou cinza.

-- Queres que te prove o contrário? Ouve a minha história.

-- Ah! é verdade. A história de teu sorriso?

-- Sim.

                                              XIV

O Almeida acendeu outro charuto.

-- Meu romance, disse Castro, começou como o teu na Rua da Quitanda. Passando ali uma manhã, vi uma moça, que produziu em mim profunda impressão. Parei para contemplá-la; mas o que eu admirava nela, não era seu talhe elegante e seu rosto gracioso: era unicamente a emanação de sua alma pura, o seu casto e ingênuo sorriso.

"Quando o carro partiu, arrebatando-a a meus olhos, conservei sua imagem gravada em minha alma. Não penses, porém, que eu revia a sua figura, os seus traços. Não: era uma forma imaterial, uma visão vaga e indistinta. Não me lembrava como eram suas feições; qual era a cor de seus olhos ou de seus cabelos; mas parecia-me que eu via sua alma refletida na minha.

"Senti que amava essa moça, e afaguei este sentimento, que enchia meu ser de alegrias inefáveis. Bastava-me ver de


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tempos a tempos a minha desconhecida e trocar com ela um olhar, ou beber-lhe de longe nos lábios o sorriso, que era emanação de seu ser.

"Estava-me reservada uma dura provança. Um dia vendo a minha desconhecida entrar no carro, descobri que ela tinha um defeito... um aleijão, é preciso dizer a palavra. A fímbria do vestido roçagando mostrou-me um pé deforme."

-- Ah! exclamou Horácio, não podendo reprimir um sorriso.

-- O acaso tornou-se nesse dia de uma previdência cruel. O que eu tinha visto de relance era um vulto confuso, um
volume
exagerado talvez pela imaginação. Podia acariciar essa ilusão, e desvanecer a impressão desagradável que sofrera;
mas o
desengano não se demorou. Passando nessa mesma hora pela loja onde compro calçado, vi sobre o mostrador uma
botina,
verdadeiro contraste da que tu achaste, Horácio!

-- É curioso!

-- Não havia que duvidar; era o molde do pé deforme que eu acabava de ver, mas o molde fiel!... Todos os traços
fisionômicos do aleijão ali estavam bem debuxados, sobretudo na fôrma que servira para o calçado, e que ali se
achava ao
lado dele. Poupa-me a descrição do que vi. Era repulsivo; isto basta.

"Imagina o que devia sofrer! Não era o feio, não; era o horrível, o estupendo, que de repente caíra como um peso
enorme
sobre meu coração, para espremer dele, com o último soro, um amor profundo e veemente.

"A luta foi terrível, mas breve. O amor triunfou, porque era o afeto d'alma, e não o culto plástico da beleza. Hoje, se
alguma
vez me lembro do que vi, entristeço-me pelo desgosto que ela há de ter de sua deformidade; mas sinto que por isso
mesmo a
amo, e a devo amar ainda mais.

"Compara agora o teu com o meu amor, e dize em consciência se tenho ou não razão. Para aniquilar o teu, não era
preciso
um aleijão; bastava substituir por uma forma comum esse primor que tu sonhaste, esse pezinho de silfo ou de deusa,
que
talvez não passe de uma ilusão."

-- Ilusão!... Se eu tive a mesma prova que tu! Mas demos a questão por finda. Nem tu conseguirás me convencer, nem
eu
quero reviver lembranças que te pesam; Desculpa-me ter falado nisto. Como podia eu imaginar uma tal coincidência!

-- É verdade!

Os dois amigos deram algumas voltas no jardim, falando de coisas indiferentes, e entrando nas salas, separaram-se.



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Horácio procurou Amélia durante algum tempo; afinal, passando pela porta do toucador, viu a mão da moça que
entreabria a
cortina de veludo verde.

-- Está triste, disse-lhe o mancebo conduzindo-a ao salão.

-- Estou fatigada, respondeu a moça com frio desdém.

Horácio conhecia profundamente a fisiologia da mulher que ama; tantas vezes tinha lido e relido o livro misterioso do
coração
feminino, que não podia escapar-lhe a menor alteração do texto. O tom de Amélia o surpreendeu; alguma coisa havia.
O que
era? O que podia ser?

Poucos momentos antes ele a deixara amável e terna; uma hora depois vinha encontrá-la desdenhosa e fria.

-- Ciúmes, naturalmente! pensou o leão com certo desvanecimento. Contaram-lhe alguma ou ela imaginou!

O moço resolveu sondar o coração da noiva:

-- A senhora tem mais alguma coisa além da fadiga, confesse.

-- Ilude-se!

-- Talvez! Concordo, para não contrariá-la ainda mais.

Deram alguns passos silenciosos.

-- Vá amanhã jantar conosco, sim? disse Amélia voltando-se para o cavalheiro com um sorriso inefável.

A transição não podia ser mais brusca: uma aurora no seio da noite, tal era aquele sorriso orvalhado de meiguices e
graças
encantadoras.

Outro, que não fosse Horácio teria respondido sem a menor hesitação o sim, que suplicavam lábios tão mimosos. Mas
esse
astuto César dos salões, perito na tática da guerra à mulher, não era homem que perdesse tão bom ensejo de alcançar
o
triunfo completo. O adversário lhe dera a vantagem da posição: cumpria aproveitá-la.

-- Amanhã?

A moça fez com a cabeça um gentil aceno.

-- Não irei.

-- Obrigada.

-- Não devo ir.



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-- Por quê?

-- Se eu fosse, pediria ainda uma vez aquilo que lhe tenho pedido tantas, e que a senhora me tem recusado tão
cruelmente.

-- Ah!

-- Bem vê!... Iria contrariá-la, aborrecê-la...

-- Cuida?...

Esta palavra tinha uma reticência, e essa reticência era um sorriso que entreabria o céu de uma alma cândida.

-- Então amanhã?... disse Horácio.

-- Vai?

-- E se eu pedir?

-- Experimente!

Amélia sentou-se, e Horácio, ébrio de ventura, desceu outra vez ao jardim para desafogar as exuberâncias de sua
alma.
Nunca a primeira entrevista da mulher que mais amara produzira nele tão profunda emoção. Para achar alguma coisa
comparável com o que então sentia fora necessário remontar aos dias da juventude, aos tempos das primeiras
pulsações de
um coração virgem.

Sua paixão por Amélia tinha realmente uma virgindade. O conquistador havia amado na mulher todas as graças e
encantos,
mas nunca até então havia adorado um pé. Devia pois experimentar realmente as sensações inebriantes de um
primeiro amor.

Na sala dançava-se a sexta quadrilha.

-- Acho-a pensativa, disse Leopoldo, reparando que o lindo rosto de seu par, ordinariamente animado por uma
gentileza
vivaz, estava agora amortecido pela reflexão.

Amélia fitou nele seus grandes olhos ingênuos.

-- E não tenho razão?...

Leopoldo calou-se. Tinha compreendido o pensamento de Amélia. Na véspera de decidir de seu destino, de ligar
eternamente sua existência, a mulher deve ter desses instantes de recolhimento íntimo. A dúvida agita-se no seio da fé
mais
profunda, o receio no amago da esperança mais risonha. As flores do coração, como as da natureza, têm um verme,
que as
babuja.



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Que podia Leopoldo dizer a essa alma perplexa? Aumentar-lhe a dúvida, dar força às vacilações, não seria digno;
parecia-lhe
uma sedução. Confortá-la em sua fé, animar-lhe a esperança, apontar-lhe para um futuro cheio de venturas, fora
nobre e
generoso; mas faltava-lhe abnegação para tanto.

Terminada a contradança, Amélia pelo braço do par deu uma volta pela sala. A um aceno de seu leque, Horácio, que
estava
conversando em um grupo, chegou-se.

-- Chame papai. São horas!

Enquanto o leão procurava o Sales para preveni-lo do desejo de sua filha, Amélia dirigiu-se ao toucador.

Leopoldo ficara surpreso de ver a moça falar a Horácio, e com um tom bem expressivo de intimidade.

-- Não pensava que se conhecessem... tanto! disse ele com a voz comovida.

-- Pois é com ele...

O rubor que tingiu as faces da donzela rematou a frase com a sublime eloqüência do pudor.

-- Não sabia? perguntou a moça para disfarçar.

-- Não!

-- Como o Sr. diz este não!

Com efeito a voz de Leopoldo tivera uma vibração profunda, quando pronunciara aquele simples monossílabo.

-- Desejava que não fosse ele? perguntou a moça com certa ansiedade.

-- Por quê?

Aproximava-se Horácio dando o braço a D. Leonor, e seguido pelo negociante. Amélia separou-se de seu cavalheiro, e
levantando a cortina de veludo do toucador, voltou-se:

-- Há de me dizer! insistiu.

-- É preciso? perguntou Leopoldo, e seu olhar desceu lentamente do rosto da moça à fímbria do vestido.

Amélia empalideceu; a cortina, escapando de sua mão trêmula, ocultou-a.

-- Conhecias Amélia? perguntou Horácio, enquanto esperava que as senhoras saíssem do toucador.

-- Estás admirado, sem dúvida! retorquiu Leopoldo secamente.

O leão fitou no companheiro um olhar interrogador; mas ocorreu-lhe de repente uma idéia, que lhe trouxe aos lábios
um
sorriso de ironia. Lembrara-se do aleijão.


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A mulher amada por Leopoldo não podia ser Amélia. Mas quem sabe se o idealista capaz de adorar uma
monstruosidade, o
espírito severo que desdenhava a beleza material, não sofria a sedução irresistível do mimoso pezinho?

-- Admirado de quê? De te ver convertido à idolatria da beleza material? . . .

Amélia que saía do toucador, embuçada em sua capa de caxemira escarlate, tomou o braço do noivo e desceu as
escadas.

Quando partia o carro de Sales, Leopoldo que também se retirava, encontrou Horácio na porta.

-- A ilusão é a única realidade desta vida! disse ele sorrindo.

-- O quê?

-- Adeus!

                                              XV

Seriam quatro horas da tarde. Amélia, já vestida para o jantar, esperava o noivo trabalhando em um bordado de
tapeçaria. A
seu lado, em uma linda banca de costura forrada de pau-cetim, havia, além dos utensílios necessários, uma profusão
de seda
frouxa de várias cores.

No cetim branco, estendido pelo elegante bastidor de mogno, via-se o risco de um par de sandálias, que pareciam
destinadas
a alguma fada, tão pequena, mimosa e delicada era a forma do pé.

Um dos esboços estava ainda intato; no outro porém via-se já um florão de rosas bordadas a seda frouxa, e no centro
a letra
L, feita com torçal de ouro. Era naturalmente a inicial do nome, em cuja tenção a moça trabalhava.

Amélia estava nesse dia talvez menos formosa, porém em compensação mais sedutora. Certa expressão languida, ou
de
cansaço ou de melancolia, embotava a flor de sua habitual lindeza, desmaiando o matiz dos lábios e das faces,
velando o
brilho dos olhos pardos. Seu traje branco ainda mais ameigava a sua fisionomia.

Não há para arrebatar os sentidos como essa languidez da mulher amada. Parece que ela verga com a exuberância do
amor,
como a planta muito viçosa, quando concentra a seiva que não brota em flor. O homem querido se regozija, pensando
que
suas palavras e suas carícias podem, como os orvalhos celestes, reanimar e expandir o coração da mulher amada.

Talvez em Amélia não fosse esse desmaio senão o efeito da fadiga do baile, e das cismas da noite maldormida.

Enquanto bordava, o ouvido da moça atento esperava algum rumor que lhe anunciasse a chegada do noivo. Um carro
parou à


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porta; e momentos depois soaram na sala de visitas os passos de alguém.

Era Horácio.

Vendo a moça na saleta próxima, o leão dirigiu-se a ela, com a familiaridade a que lhe dava direito seu título de noivo.
Trocados os cumprimentos usuais, sentou-se junto ao bastidor.

-- O que está bordando?

Amélia fez um gesto para cobrir o bordado:

-- Deixe ver! insistiu o moço.

-- Não vale a pena!

-- Ah!

Esta exclamação desfez-se nos lábios do mancebo em um sorriso de júbilo.

-- É um presente de anos para uma amiga! disse Amélia.

-- Não são para a senhora?

-- Não, respondeu a moça admirada.

-- Está zombando comigo!

-- Veja!

A unha de nácar da moça mostrou o L bordado a ouro.

-- Pois há quem-tenha este pezinho mimoso, a não ser minha noiva? disse Horácio rindo-se.

-- Eu? exclamou Amélia enrubescendo. Pobre de mim!

-- Lembra-se do que me prometeu ontem à noite?

Uma nuvem de tristeza cobriu o lindo semblante da moça; com a fronte pendida e os olhos baixos, parecia contraída
por uma
dor íntima.

-- Amélia!

-- Ontem... não tive animo de contrariá-lo. Fiz mal; desculpe-me.

-- Então sua promessa? disse o moço com ironia.

Amélia voltou o rosto como para esconder uma lágrima.

-- Acredite. O que me pede... não posso... não tenho forças para fazer. Se o senhor soubesse!... E entretanto deve saber,


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porque... Eu lhe suplico, não falemos disso agora; depois eu lhe direi. Prometo-lhe.

-- Não se dê a este trabalho. Já sei quanto basta: zombou de mim.

Horácio levantou-se visivelmente despeitado, e volveu os passos pela sala. Amélia continuou a bordar talvez para
disfarçar o
seu vexame.

Decorridos alguns instantes, Horácio, lançando um olhar para a moça, ocupada com seu bordado, viu alguma coisa
que o
sobressaltou. A fímbria do vestido, suspensa na travessa do bastidor, devia descobrir o pé da moça para quem
estivesse
sentado à sua esquerda.

O leão aproximou-se na esperança de surpreender o avaro tesouro que se roubava a seus olhos.

-- Não sabia que bordava tão bem!

-- Ora! Não tenho paciência para estes trabalhos. Se não fosse uma dívida...

-- Como? Não é mais presente de anos?

-- Uma e outra coisa.

-- Ou talvez nem uma nem outra, disse Horácio adoçando o tom de ironia.

-- Que necessidade tinha eu de enganá-lo? disse Amélia com um doce ressentimento. Uma amiga minha...

-- Cujo nome não consta.

-- É segredo! atalhou a moça com faceirice.

-- Ah! É segredo?

-- Inviolável. Ela não quer por coisa alguma que saibam, nem mesmo suspeitem...

-- Que é sua amiga?

-- Ora!... Que tem um pé deste tamanho, disse a moça mostrando o bordado.

-- Deveras? acudiu Horácio.

-- Ela pensa que é um aleijão e sente uma tristeza...

-- Na verdade, possui um tesouro, um primor! Admira como sua amiga já não morreu de desgosto.

-- Mas, falando sério: não é natural que uma moça tenha o pé de uma menina de sete anos.

-- Não sei se é natural; mas sublime, asseguro-lhe que é. Há certas graças na mulher que devem ficar sempre meninas;
as


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huris, as fadas, as deusas, são assim.

-- Com efeito! Se eu fosse ciumenta!

-- De sua amiga?... De uma amiga tão íntima?... Era quase ter ciúmes de si mesma! disse Horácio gracejando.

-- O que o senhor quer, sei eu. É ver se adivinha.

Horácio tinha sustentado esta conversa com interesse extremo, menos pelas palavras da moça, do que pelos
movimentos da
fímbria do vestido. A saia, arregaçando gradualmente com a inflexão do talhe gentil da moça reclinada sobre o
bastidor,
prometia brevemente descobrir o tesouro, tão estremecido pelo mancebo.

Amélia, ocupada com seu trabalho e distraída com a conversa, se esquecera daquele constante cuidado que ela tinha
em
compor a orla do vestido. Durante a conversa apenas uma vez tirara os olhos do bordado, para lançar uma vista
furtiva ao
leão.

-- Mas então essa amiga misteriosa... A senhora ia contar uma história, se não me engano.

-- História, não senhor. Queria explicar-lhe por que este bordado é o pagamento de uma dívida.

-- Justamente.

-- Pois essa minha amiga incomodava-se muito quando tinha de comprar botinas; custava achar um par que lhe
servisse. As
de senhora eram muito grandes; as de menina eram muito baixas. Afinal encontrou um sapateiro, que trabalha tão
bem como
os melhores de Paris.

-- É exato.

-- Como exato? O senhor sabe?

-- A senhora não fala do Campàs? disse Horácio um tanto perturbado.

-- Não, senhor.

-- Pensei.

-- Haverá dois meses, indo eu à cidade, minha amiga, que tinha feito uma encomenda de botinas, pediu-me para ver
se estava
pronta. Quando o criado a trouxe para o carro onde o esperava, caiu um pé de botina já usado, que fora para modelo.
Minha
amiga ficou muito aflita; e eu fiz tenção de dar-lhe no dia de seus anos umas chinelas bordadas por mim. Bem vê que
não o
enganei.



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Proferindo as últimas palavras, Amélia sempre ocupada com seu bordado, debruçou-se completamente sobre o
bastidor para
desembaraçar o fio de seda frouxo. Este movimento produziu o que Horácio esperava. A saia, retraída pela travessa
do
bastidor, descobriu até o artelho o pé da moça.

O moço estremeceu com a forte emoção; e fechou os olhos, atordoado.

O que vira era uma coisa indefinível, estupenda. Era o aleijão, a monstruosidade de que lhe falara Leopoldo. Aquela
massa
informe; aquela enormidade cheia de cavernas e protuberâncias, ele a tinha ali em face, diante dos olhos,
escarnecendo do seu
amor, como um desses caturras hediondos das lendas da Idade Média.

-- Diga-me uma coisa: ontem depois que saímos, o senhor conversou com aquele moço que dançou comigo? O
Leopoldo,
não é?

Não recebendo resposta, Amélia ergueu a cabeça para interrogar o noivo com o olhar. O aspecto demudado de
Horácio, o
sorriso pungente que amarrotava seu bigode artístico, a vista ansiada que ele tinha fixa no monstro, lhe revelaram
subitamente
o que sucedera.

Um grito de aflição escapou-se do peito da moça, que afastou violentamente de si o bastidor, causa do acidente, e
colheu os
largos volantes da saia, ocultando o que ela por tanto tempo defendera contra a curiosidade sôfrega do moço. Por
alguns
instantes os noivos permaneceram mudos e confusos, sentindo-se repelidos um pelo outro, e contudo não ousando
afastar-se.
É um suplício cruel esse que inflige a presença de um ente que faz corar de vergonha.

Afinal Horácio levantou-se e deu alguns passos a esmo. Amélia aproveitou-se desse movimento para fugir da sala.
Ficando
só, o leão dardejou para o interior um olhar terrível; e tomando o chapéu, desceu rapidamente as escadas.

Agora ele compreendia tudo; e as palavras que Leopoldo lhe dissera na véspera, ao sair do baile, lhe repercutiam ao
ouvido,
como uma gargalhada satânica:-- "A ilusão é a única realidade deste mundo".

-- Como pude eu tanto tempo iludir-me com o excessivo recato de Amélia? Como não desconfiei do pudor selvagem
que
velava semelhante a um dragão sobre o terrível segredo?

"Não há moça, seja ela o anjo da pudicícia, que não mostre ao menos a pontinha do pé, quando o tem mimoso e
gentil. Eu
devia saber disso, mas estava cego. Todos cochilamos, sem ser Homeros; eu que me prezo de conhecer a mulher,
portei-me
como um calouro.



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"Consumir dois meses a correr após um sombra, e quando esperava que a sombra tomasse corpo, ela se desvanece...
Qual!
Antes se desvanecesse; mas ao contrário toma um vulto medonho, enorme, esquálido. Faz-me quase lembrar o verso
de
Camões."

Horácio soltou uma gargalhada:

-- Realmente eu não sei qual de nós dois ficou mais corrido. Se ela de mostrar a toesa; se eu de a ver.

"Sonhar uma pérola, e encontrar um seixo; imaginar um mimo, e achar uma brutalidade; desejar um botão de rosa, e
colher
uma túbara!

"Se os rapazes souberem disto, estou desonrado. Como posso eu mais apresentar-me na Rua do Ouvidor, quando a
coisa
divulgar-se? Todo o asno terá direito de atirar-me o coice, como ao leão moribundo da fábula."

Horácio começou a refletir se fizera bem saindo tão precipitadamente da casa de Sales. Moderou o passo, e olhou o
relógio.
Eram perto de cinco horas. Se voltasse, chegaria tarde; demais, como explicar a retirada e a volta?

-- Em todo caso, pensou o leão, a fortuna não me desamparou de todo. Assim como a ilusão durou até hoje, podia
prolongar-se mais algumas semanas, e... Tremo de horror, quando me lembro que eu podia ser atado àquele mourão,
àquele
poste! Ser condenado a arrastar uma trave por toda a vida? Que suplício!

"Se eu pudesse imaginar que o Onipotente, criador de tantas maravilhas, se ocupa com a minha ridícula
individualidade e se
interessa pelos pecados que eu tenho cometido, me ajoelhava aqui mesmo na rua, e lhe renderia graças pela minha
salvação.

"Quem se livrasse de ser esmagado por uma rocha, não escaparia de tão grande perigo como eu. Casar-se um homem
com
aquele pé, seria predestinar-se para o homicídio."

Passava um carro, que parou de repente.

-- Ainda por aqui, Almeida? disse o Sales deitando a cabeça fora do carro.

-- É verdade... saí, mas...

-- Entre, que hão de estar à nossa espera. São cinco horas; demorei-me hoje além do costume; por causa mesmo do
senhor,
maganão! Certos arranjos.

Horácio procurou rir, mas fez uma careta que desculpou com um calo. Ele, o leão, sempre elegante, correto e
irrepreensível
no traje como nas maneiras, tinha perdido completamente a serenidade de espírito.



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As senhoras estavam reunidas na saleta. Amélia ficou surpreendida, vendo Horácio de volta com seu pai; e reprimiu o
contentamento que sentia. Mas este durou pouco. Ela conheceu logo que o leão obedecera mais às conveniências, do
que ao
afeto que lhe tinha.

Contudo essa volta significava alguma coisa. Ela, Amélia, não causava horror a seu noivo.

O jantar foi animado pela conversa viva e espirituosa de Horácio, que havia recuperado seu sangue-frio. Uma
circunstância
porém não escapou a Amélia, que passou despercebida às outras pessoas; o leão, apesar de sentado à sua esquerda,
não
achou um momento para trocar com ela uma palavra. Ao contrário, manteve sempre a conversação geral, para
impedir o
diálogo íntimo, que ele receava.

Terminando o jantar, Horácio achou um pretexto para retirar-se logo.

-- O que se passou, D. Amélia, é mais do que um segredo para mim; eu nada sei, esqueci, disse ele despedindo-se.

Tocando apenas na mão que a moça lhe estendera, saiu.

Amélia deu um passo para chamá-lo, mas apoiando-se ao recosto do sofá, permaneceu imóvel, escutando os passos
do
noivo até que se perderam ao longe.

                                              XVI

Fazia uma semana que Horácio não aparecia em casa de Sales.

Amélia tinha por duas vezes mandado saber do noivo. Da primeira contentou-se com um recado; da segunda
enviou-lhe uma
saudade.

O negociante de sua parte havia passado por casa do moço, que pretextou um defluxo para justificar sua ausência; e
prometeu aparecer no dia seguinte.

Horácio compreendia a necessidade de sair da posição difícil em que se achava, mas debalde procurava um meio.
Cansado
de cogitar, entendeu que o melhor era confiar-se à inspiração do momento.

No dia seguinte à noite, dirigiu-se à casa do negociante.

As duas senhoras estavam sentadas junto à mesa; a mãe lia, a filha pensava. Amélia estava triste, sua mãe supunha
que eram
saudades.

Quando Horácio entrou, D. Leonor o festejou com verdadeiro prazer. Amélia sentiu um vislumbre de esperança, que
iluminou
o sorriso de seus lábios.



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-- Felizmente! exclamou D. Leonor. Esta casa era uma fonte dos suspiros!

A conversação começou friamente, e foi se arrastando por algum tempo. -- Não tem saído? perguntou Horácio depois
de
uma pausa.

-- Não; Amélia não tem querido.

-- Por quê? perguntou o moço voltando-se para a noiva.

-- Então não sabe? acudiu D. Leonor.

-- Porque não se ofereceu ocasião, disse Amélia.

-- Mas tem recebido visitas?

-- Algumas.

-- O Leopoldo não apareceu?

-- Não freqüenta nossa casa, respondeu a moça.

-- Ah!... cuidei.

-- Se ele nos visitasse, o senhor o teria encontrado aqui muitas vezes. -- Podíamos nos desencontrar, disse Horácio com
um
sorriso motejador. Amélia percebeu que o moço estava procurando um pretexto para despeitar-se. D. Leonor tendo
continuado a leitura interrompida, estava alheia à conversação.

-- Foi em casa do Azevedo que o apresentaram à senhora?

-- Não; conheço-o de muito tempo; há perto de dois meses.

-- De onde, se não é segredo?

-- Segredo, por quê? Ele freqüenta a casa de D. Clementina que recebe às quintas-feiras. Constantemente nos
encontramos
aí. É uma reunião muito agradável; estamos quase em família, sem a menor cerimônia.

-- Ah! nunca me convidou para essas reuniões; eu teria muito prazer em acompanhá-la, mas talvez fosse importuno,
como já
vou sendo aqui.

-- O senhor está habituado a viver na alta sociedade; havia de aborrecer-se.

-- Mas a senhora não se aborrecia; ao contrário divertia-se bastante.

-- Alguma coisa.

-- E Leopoldo era seu par?


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-- Era.

-- Par constante?

-- Não sei se era constante ou não; quase sempre ele dançava comigo, porque lá não há muito onde escolher; os pares
são
poucos.

-- Ótimo sistema! Assim não se repara.

-- Em quê?

-- Em certa assiduidade! Ainda mesmo que uma moça já tenha noivo arranjado, há gente que exige da parte dessa
moça
certa reserva, porque enfim o outro pode não querer aceitar a responsabilidade de tudo! É uma impertinência,
concordo, mas
o mundo tem destes caprichos.

-- Isso se entende naturalmente com as moças que têm noivo arranjado, retorquiu Amélia frisando a palavra, e não
com
aquelas, cuja mão se pediu talvez para satisfazer uma simples fantasia.

A moça levantou-se da mesa lançando ao leão um olhar desdenhoso, e foi sentar-se ao piano. Enquanto ela tocava
uma
variação de Thalberg, Horácio para fazer alguma coisa, se entreteve em arranjar as figuras chinesas de um jogo de
paciência.
Nunca ele precisara tanto de prover-se dessa virtude evangélica.

Decorridos alguns instantes o leão ergueu-se da mesa, deu algumas voltas pela sala, e aproximou-se do piano, como
para ver
a elegância com que a moça dedilhava.

-- A senhora acha muito natural, D. Amélia, que uma noiva freqüente assiduamente uma casa onde não tem entrada o
homem
com quem vai casar-se; acha natural que essa moça tenha em tais reuniões um par efetivo que provavelmente cultiva
uma
dessas amizades cândidas dos romances de Balzac, verdadeiros lírios do vale, que vivem de orvalhos e de sombras.
Eu,
porém, sou um espírito prosaico e material; tenho a infelicidade de não acreditar na atração misteriosa dos espíritos,
no
consórcio ideal ias almas irmãs, nos sonhos etéreos, nos eflúvios celestes, em toda essa gíria

sentimental. Para mim, inteligência grosseira, tudo isso não passa de uma hipocrisia do primeiro tartufo deste mundo, o
amor.
É um tiranete que toma todas as figuras e posições; faz-se menino ou velho, anjo ou demônio, poeta ou banqueiro...
Estou
incomodando-a talvez?

-- Não; acabe.


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A moça fazia com uma ligeira surdina o acompanhamento das palavras do leão; mas à última frase, ela retirou as
mãos do
teclado. Foi esse o motivo da pergunta de Horácio.

-- A senhora deve sentir muito, e Leopoldo com maior razão, de serem privados de uma distração que tanto lhes
agrada!

-- Compreendo, replicou Amélia. O senhor me proíbe que eu vá à casa de D. Clementina?

-- Que idéia! Não tenho direito de proibir; ainda não sou seu marido; a senhora é completamente livre de suas ações,
pode ir
à casa de D. Clementina, ou onde lhe aprouver; assim como eu posso, querendo, passar as noites no Clube ou no
Alcázar.

Amélia soltou uma risada.

-- Pensava que os leões estavam isentos dessa fragilidade do ciúme.

-- Perdão; não se trata de ciúme, nem sei o que isso é. A questão reduz-se a uma antipatia de caracteres, a uma
contradição
de gênios, que deve ter para o futuro graves conseqüências. A senhora é idealista, eu sou materialista. Um quisera viver
no
mundo dos sonhos, outro neste vale das lágrimas e das realidades. A senhora procurando-me no céu entre as estrelas e
os
anjos, e não me achando aí, sofreria uma cruel decepção; entretanto que eu na terra, ficarei reduzido à sombra da
mulher que
amei.

-- Não é tão pouco, para quem se contentava com um pé de criança, disse Amélia com ironia.

-- Mas esse pé era a realidade, a expressão a mais sublime dela!

-- Custa-lhe pouco a possuir essa realidade. Mande fabricá-la em cera: sairá ainda mais perfeita.

-- Ainda não perdi a esperança de encontrá-la.

O chá interrompeu o diálogo. Os dois noivos aproximaram da mesa oval, onde o criado acabava de colocar a bandeja.

A fisionomia de Amélia perdera a expressão de tristeza e desânimo que tinha a princípio; a conversa lhe deixara no
semblante
alguns tons vivos.

Ocupada em dispor as xícaras para enchê-las, os gestos sempre macios da moça revelavam certa crispação nervosa.

Horácio ficara contrariado, porque não tivera tempo de precipitar o casus belli. Receava que se demorasse ainda o
rompimento que ele tanto desejava.

-- Mamãe, disse Amélia com intenção, amanhã é quinta-feira. Vamos passar a noite em casa de D. Clementina?



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-- Se quiseres.

-- Não devemos faltar; deixamos de ir a semana passada.

-- Foi logo depois do baile do Azevedo.

-- Não o convido, disse Amélia voltando-se para Horácio, porque o senhor não freqüenta essas reuniões de gente
pobre.

-- Sem dúvida; tenho medo de evaporar-me em devaneios e suspiros, respondeu Horácio, cruzando com a moça um
olhar de
desafio.

Ele sentiu que Amélia o provocava, e exultou. A moça estava disposta a resistir; o rompimento era infalível e pronto.

-- Eu gosto bem dessas partidas; a noite passa tão agradável.

Aproveitando-se de um momento em que D. Leonor se afastou, Horácio atirou à moça rapidamente estas palavras:

-- Pois se a senhora voltar à casa de D. Clementina, eu não voltarei mais aqui.

Amélia estremeceu.

Um quarto de hora depois, Horácio retirou-se. Quando se despedia das senhoras, disse o leão à moça apertando-lhe a
mão:

-- Desejo que se divirta muito amanhã.

-- Aonde? perguntou D. Leonor.

-- Em casa de D. Clementina. Não vai, D. Amélia?

A moça hesitou um instante. O ofego de seu colo traiu uma luta violenta, mas rápida.

Sua resolução, antes que ela a exprimisse, manifestou-se na altivez do porte, que uma vibração íntima erigira.

-- Vou sem falta!

Horácio, soltando a mão da moça, que foi bater inerte nos folhos do vestido, cortejou profundamente:

-- Seja muito feliz.

Apenas o leão desapareceu na porta, Amélia abraçando e beijando a mãe, subiu precipitadamente a sua alcova;
atirou-se a
uma conversadeira, e desafogou em pranto e soluços a dor que tinha recalcado desde muitos dias.

A maior parte da noite foi para ela de vigília. Viu correrem as horas; cada momento que se escoava era uma
esperança, uma
ilusão que se desfolhava da flor viçosa de sua alma.



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Aqueles que se separam das pessoas ou dos sítios queridos, conhecem bem esse travo de coração que chamamos
saudade; e
sabem quanto é cruel o momento da separação.

Mas não há despedida cruciante como seja a da alma pelo amor que nutriu durante muito tempo. Há aí mais do que
uma
separação: é quase a mutilação moral.

Amélia compreendera que tudo acabara entre Horácio e ela. Desde o dia do jantar receara esse resultado; mas ainda
alimentava uma esperança. Naquela noite a esperança murchara, se não foi ela própria, Amélia, quem a desfolhara.

Agora na calada da noite, em sua alcova que lhe parecia um ermo, ela tinha medo do isolamento em que se achava.
Algumas
vezes sua alma sentia-se como que asfixiada pelo silêncio e pela treva que a submergiam.

                                             XVII

Como dissera a Amélia, na sua última visita, Horácio não tinha perdido a esperança de encontrar o que ele chamava a
realidade de seu amor: o pezinho gentil e mimoso do qual ele possuía a botina.

Iludira-se nas suas investigações; era preciso recomeçar.

Tal era o pensamento que preocupava o leão, recostado naquela mesma poltrona, onde o vimos no primeiro dia. Seu
olhar
embebido nos frocos de fumaça do puro havana, rasteava nas espirais diáfanas a imagem confusa de seus
pensamentos.

Tinham decorrido três dias depois do seu rompimento com Amélia. Logo na seguinte manhã, o leão para não dar
tempo ao
arrependimento da moça, escreveu uma carta ao Sales, manifestando seu receio de que a antipatia de gênios tornasse
infeliz
uma união que todos ardentemente desejavam.

O negociante mostrou a carta à filha, que lhe disse com um sorriso forçado:

-- Ele tem razão!

A carta de Horácio teve resposta no mesmo dia. O Sales encontrando-o na Rua do Ouvidor recusou-lhe o
cumprimento.

O leão, satisfeito com esse pronto desenlace que evitava longas explicações, achou-se a poucos passos de distância em
frente
de Leopoldo.

-- Oh! Tu me trazes felicidade! exclamou o leão, apertando-lhe a mão. Sempre que nos encontramos, ou está para
acontecer
ou já tem acontecido alguma coisa de bom para mim.

-- Não sabes quanto estimo!... Assim eu sou uma espécie de astro propício, sob cuja influência nasceste.



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-- Queres ver? Havia muito tempo que não te via, quando nos encontramos no baile do Azevedo. Pois nessa noite
decidiu-se
meu destino.

-- Ah! e sob o meu influxo benéfico?

-- Está visto. Lembras-te que eu te disse que estava disposto a todos os sacrifícios até o do casamento para possuir
aquele
pezinho!...

-- Lembro-me.

-- O único obstáculo era uma espécie de promessa ou arranjo de família. Felizmente a menina, a tal Amélia,
compreendeu que
perdia seu tempo, e arrufou-se na noite do baile por uma ninharia. Eu aproveitei o pretexto; escrevi ao pai retirando
minha
palavra, e agora mesmo ele me acaba de responder. Estou livre como o ar, e contente como um rapaz que sai do
colégio.

-- Neste caso dou-te meus parabéns.

-- E tu como vais com o sorriso?

-- Sem novidade.

-- Dize-me uma coisa, no dia em que a viste pela primeira vez, ela estava só ou com outra moça? Faço-te esta
pergunta
porque foi na Rua da Quitanda e quase pelo mesmo tempo que eu achei a botina.

-- Eram duas, respondeu Leopoldo sorrindo.

-- Em uma vitória?

-- Sim.

-- A outra era mais baixa?

-- Não afirmo.

-- Adeus.

O leão separou-se do amigo, e repassando as particularidades de sua conversa com Amélia perto do bastidor e no dia
do
jantar, começou a combiná-las com as informações de Leopoldo e com as circunstâncias do encontro no Passeio
Público,
onde vira o sinal impresso na areia pelo mimoso pezinho.

Agora, fumando seu charuto depois do jantar, o leão resumia todas as suas reflexões, e chegava a este resultado:

-- Decididamente o pezinho é de uma moça que ia com Amélia, no dia em que se perdeu a botina e no dia em que eu a


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vi de
longe no Passeio Público. Essa moça, cuja inicial é um L, não é outra senão Laura. Aquele pudor feroz era um indício
infalível.
Amélia procurava imitá-lo por motivo bem diverso: mas não o conseguiu.

O moço chegou-se à banquinha onde estava o cofre de pau-rosa e contemplou a botina.

À noite, o leão foi a uma partida. Sua estrela o favorecia. Laura lá estava. Dirigiu-lhe algumas banalidades graciosas,
que ela a
princípio recebeu com manifesta esquivança, mas depois com timidez.

Horácio compreendia a razão do procedimento da moça. Para tranqüilizá-la, teve o cuidado de nunca abaixar a vista
à fímbria
do vestido, e mostrar-se enlevado pelo colo gracioso da gentil senhora. A lição que recebera anteriormente, o tornou de
uma
prudência consumada.

No fim da noite o leão conseguira restabelecer a confiança no espírito de Laura, desvanecendo-lhe a suspeita deixada
pela
cena do teatro. Era o essencial; com os meios de sedução de que dispunha, e a inclinação que a moça revelava por ele,
contava certa a conquista. A questão era de tempo.

Antes de quinze dias freqüentava a casa da moça e estava na intimidade da família.

Laura perdera o marido aos 17 anos, pouco tempo depois de casada. Era rica; não lhe faltavam pretendentes atraídos
pelo
dote e pela beleza; mas ela não parecia disposta a tentar segunda vez a felicidade conjugal, embora não tivesse
passado da
lua-de-mel. É natural que o desejo lhe chegasse com o primeiro fio de neve; quando fossem rareando os apaixonados
que a
cercavam.

Uma manhã, Horácio passando a pé, como costumava, pela casa da moça, viu-a, por entre as grades, sentada no
jardim
ocupada em fazer um ramo de flores. Entrou e foi ter com ela, à sombra de uma latada de madressilvas.

Laura deu-lhe lugar perto de si; e começaram a conversar sobre flores, modas e mil futilidades.

Eram dez horas do dia. O sol brilhava em céu límpido; uma aragem fresca sussurrava entre as folhas; os coleiros
trinavam nas
ramas das laranjeiras. Esse concerto de perfumes e harmonias convidava o coração a abrir-se e cantar o seu hino de
amor.

Laura reclinou a fonte e emudeceu, com os olhos embebidos no seio de uma rosa, que tinha no regaço. Horácio
tomou-lhe a
mão, que ela cedeu com tênue resistência.

-- Sabe desde quando eu a amo, Laura? Desde o dia em que a vi pela primeira vez passar em um carro. Foi, se não me
engano, na Rua da Quitanda; ia com a filha do Sales. Lembra-se?



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A moça fez um gesto afirmativo.

-- Depois encontrei-a no teatro. A princípio seus olhos me deixaram conceber alguma esperança; mas o desengano foi
cruel.
Nem imagina como sofri! Cuidei que não houvesse mulher capaz de obrigar-me a voltar às ingenuidades dos 18 anos.
Um dia
ainda me lembro, via-a de longe entrar no Passeio Público; apressei-me para ter o prazer de cortejá-la, receber um
olhar.
Debalde corri todas as ruas; quando voltei à porta fiquei desesperado. A senhora tinha saído, sempre com a filha do
Sales.
Recorda-se?

-- Recordo-me, respondeu a moça. Mas era por mim que fazia tudo

isso?

- Duvida, Laura?

-- Nega que esteve apaixonado por Amélia? Até diziam que já a tinha pedido.

-- Que ingratidão! Não sabe então por que me fiz apresentar em casa do Sales? Para vê-la; era preciso procurar um
meio; a
senhora já não se lembra da dureza com que me tratava.

-- E por isso consolava-se com Amélia?

-- Se amasse, Laura, havia de saber o que é o ciúme, e as loucuras que ele nos obriga a fazer! Mas a senhora não ama!

-- Quem lhe disse?

-- Essa frieza.

-- E o que eu sofri?... balbuciou a moca pondo os olhos languidos no semblante do mancebo.

-- Perdão, Laura, exclamou Horácio ajoelhando. Eu era um louco, indigno de teu amor; e não mereço tanta felicidade.
Mas
deixa-me implorar o meu perdão; deixa-me beijar teus pés, que...

-- Ah! .. .

Horácio proferiu aquelas palavras apaixonadas, de joelhos diante da moca que sorria inclinada para ele; de repente
abaixou-se para beijar-lhe os pés, esse objeto de sua adoração. Foi então que ela soltando um grito de espanto, o
repeliu
para longe de si com horror.

Contudo, o moço, que preparara toda aquela cena para chegar à realização do desejo por tanto tempo afagado,
conseguira
ver... mas não o que esperava: um pezinho mimoso e gentil; e sim dois pés ingleses de sofrível tamanho, que lhe
pareciam
descansar sobre uma almofada preta.


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O semblante de Laura se tinha demudado de uma maneira espantosa; em suas faces intumescidas respirava uma
expressão
feroz de ódio e vingança.

Horácio compreendeu que naquele momento qualquer explicação era impossível. O que tinha de melhor a fazer era
eclipsar-se. No fim de contas esse desenlace lhe convinha, pois cortava todas as dificuldades da retirada.

Cortejou e saiu.

A alguns passos da casa, o leão não pôde conter uma gargalhada, que lhe estava a sufocar, e desabafou-a. Realmente
havia
de que rir; duas vezes mistificado em sua paixão, ele, o rei da moda, o conquistador sempre feliz.

Insensivelmente começou a refletir sobre o ocorrido. Por mais que se desse tratos à imaginação, não podia decifrar o
enigma.
A botina que achara fora perdida por uma das duas moças; mas não pertencia a nenhuma. Seria encomenda de outra
amiga, e
talvez para alguma menina de dez anos?

De repente surgiu no espírito de Horácio uma idéia tão original, como a situação em que se achava.

-- Eu vi os dois pés de Laura; mas de Amélia, só vi um; é verdade que esse valia por três. Mas... Não resta dúvida. A
natureza tem destes caprichos. A maravilha a par do monstro, o mimo em face da deformidade! É o princípio do
contraste,
que rege o mundo. Eu vi o direito, o aleijão. O esquerdo ficou oculto como a pérola e o diamante.

Compenetrado dessa idéia, de que o pezinho adorado pertencia a Amélia, a quem a natureza em compensação
aleijara o
outro, Horácio admitiu a possibilidade de que sua paixão pela moça revivesse, embora menos ardente, ou mais
positiva.

Ter aquele pezinho em suas mãos, senti-lo estremecer e palpitar de emoção, cobri-lo de beijos, acariciar a rósea cútis
diáfana
tecida de veias azuis, brincar-lhe com as unhas crespas, como conchinhas de nácar, cingir ao seio esse gnomo gentil,
titilante
de amor e volúpia!...

Não podia haver para o leão maior delícia neste mundo. Ele daria por ela todo o quinhão de prazer que porventura lhe
estava
reservado para o resto da existência.

Foi engolfado nestes devaneios que Horácio apeou-se à Rua Direita de um tílburi, que tomara no Largo do Machado.

Seguindo para a Rua do Ouvidor, a passo lento e descuidado, o leão aspirava o ar da cidade, como o ocioso que não
sabe
em que há de consumir o dia e fareja uma aventura qualquer.

De repente avistou coisa que o pôs alerta. Um carro que subia a Rua do Ouvidor passou por ele; era o cupê do Sales. O
rosto encantador de Amélia apareceu-lhe a princípio de relance na penumbra que azulava o acolchoado de damasco,


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e
depois em plena luz moldurado pelo quadro do postigo.

Acompanhando com o olhar a carruagem, Horácio a viu rodar por algum tempo vagarosamente por causa de
embaraço no
transito e parar próximo à esquina da Rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba, esperava naturalmente
ordem para
abrir.

Horácio apressou o passo. Por duas vezes avistara a fronte de Amélia coroada com um chapeuzinho de palha da
Itália,
assomando no postigo, a fim de percorrer a rua com o olhar. A idéia de que a moça lhe desejava falar passou pela
mente do
leão, que a repeliu, sem contudo considerá-la impossível.

Em todo caso ele acreditou que mais ou menos tinha parte naquela parada do carro, e não se enganava.

-- Para que mandaste parar? perguntou D. Leonor.

-- Quero comprar luvas no Masset, respondeu a filha.

-- Ficou atrás.

-- Podemos ir a pé.

Quando o leão chegou a dez braças do carro, a portinhola abriu-se, e Amélia, em companhia de sua mãe, saltou na
calçada.
A moça tinha um roupão cor de café, de extrema simplicidade, porém muito elegante; as luvas eram da mesma cor de
cinza
das fitas do chapéu de palha.

As duas senhoras dirigiram-se para a casa do Masset. Horácio procurou cortejá-las na passagem, mas elas não lhe
deram
ocasião. Contudo o leão reparou que a moça disfarçadamente voltou o rosto para olhá-lo.

Enquanto as senhoras compravam luvas, Horácio as esperava em frente da casa do Valais, a alguns passos do carro.
Pouco
tardaram. Amélia vinha só na frente. Felizmente o transito pela calçada diminuiu naquele instante, de modo que o
conquistador
pôde ver a gosto a moça aproximar-se dele. Levados por impulso irresistível os olhares do mancebo abaixavam-se
para os
volantes do vestido, e rastejaram no chão que a moça pisava.

Amélia percebeu a insistência do olhar, e um ligeiro sorriso fugiu-lhe dos lábios. Imaginando que na calçada havia
lama, colheu
com ambas as mãos a frente da saia, e com tanto estouvamento que descobriu os pés até o colo da perna.

Horácio ficou fulminado.

Vira pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merinó cor de cinza. Pareciam


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um par
de rolinhas, arrulhando na praia e beijando-se com o biquinho rosado. Durante o rápido instante, que seus olhos
puderam
admirar esses primores de graça e gentileza, não escaparam a Horácio as ondulações voluptuosas e os contornos
suaves dos
dois silfos. Nunca ele observara no talhe elegante da mais formosa mulher requebros tão aveludados, como tinha
aquele dorso
arqueado e aquela palmilha sutil.

Tamanho foi o pasmo de Horácio, que sr deu por si quando a moça, passando por ele, entrou na carruagem. Voltou-se
então
precipitadamente, sem consciência do que ia fazer; mas a parelha já tinha partido a trote largo.

Momentos depois o leão descia a Rua do Ouvidor completamente absorto. Seu lábio distraído ia debulhando, sem o
sentir,
alguns trechos dos lindos versos do conselheiro José Bonifácio:

"Padres, não me negueis, se estais em calma, "Um coração no pé, na perna um'alma!"

                                             XVIII

Laura e Amélia eram primas e amigas de infância; havia entre elas apenas a diferença de dezoito meses.

Desde a idade de três ou quatro anos, isto é, desde que deixou as faixas, Laura usou sempre de roupas compridas. Isso
causava reparo a todos que viam a menina trajada como uma senhora. Muitos achavam extravagante e ridículo o
capricho e
censuravam a mãe.

Esta ouvia as censuras de suas amigas, assim como os motejos estranhos, e calava-se; mas não alterava o vestuário
da
menina. A ternura e piedade materna lhe davam a paciência necessária para arrostar com as zombarias do mundo.

Laura tinha um aleijão; nascera com os pés disformes. Para mais agravar o desgosto dos pais, essa monstruosidade
vinha
ligada a uma beleza angélica. A senhora avaliou do infortúnio de sua filha, e preparou-se para todos os sacrifícios.
Consultas
foram dirigidas aos melhores médicos da Europa; chegou a empreender uma viagem para tentar os recursos da
ciência; foram
todos ineficazes.

Desenganada afinal, dedicou-se a esconder a desgraça de sua filha, a fim de que ela não fosse obrigada a
envergonhar-se na
sociedade. Durante muito tempo Laura não teve outra criada, além de sua mãe. À custa de esforços constantes, de
uma
vigilância incessante de cada dia e cada hora, conseguiu a senhora manter esse segredo de família, do qual dependia a
felicidade da filha.

Atingindo a idade de oito anos, a menina com o instinto da mulher, compreendera seu infortúnio; e desde então
descansou a
mãe daquele cuidado incessante. Ficando moça casou-se, e seu marido que a amava estremecidamente, morreu


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ignorando o
segredo.

Com bastante mágoa sua, Amélia surpreendeu o segredo da prima e amiga.

A filha de Sales tinha dois pezinhos de fada, breves, arqueados, com uns dedos que pareciam botões de rosa. O
desgosto e
vexame que isso causava à moça, ninguém o imagina. Ela supunha-se aleijada; apesar de seus 18 anos, seus pés eram
de
menina.

Assim o mesmo cuidado com que Laura escondia a sua monstruosidade, punha ela em ocultar essa graça e prenda da
natureza. Naquele tempo não se tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrário, o tom era
arrastar
desdenhosamente pelo chão a longa fímbria do vestido.

Um dia que Laura passou em sua casa, Amélia teve curiosidade de comparar seu pezinho com o da prima, para saber
se a
diferença era excessiva. Enquanto a outra endireitava o penteado no toucador, realizou ela seu intento.

Avalie-se da vergonha e aflição de Laura; o desespero de Amélia foi maior ainda. Não perdoava a si mesma o ter
causado
tão grande pesar à prima, a quem ela queria muito bem. Para mitigar essa dor profunda, Laura esqueceu a sua.

Desde então as duas amigas se consolavam mutuamente. Laura admirava o pezinho de Amélia; esta, ou
sinceramente, ou para
atenuar a mágoa da prima, chegava a invejar o seu infortúnio.

Aborrecida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse, Amélia tinha descoberto por acaso o sapateiro da Rua
Sete
de Setembro. Conhecendo a habilidade do Matos, pensou que ele pudesse disfarçar o defeito da prima. Não se
enganou; o
artista realizara a obra-prima de paciência, que Leopoldo tivera ocasião de apreciar por um acaso.

Amélia fez a Laura o sacrifício de expor-se para não comprometer o segredo da amiga. O sapateiro não a conhecia,
nunca a
tinha visto, recebia as encomendas por intermédio de um criado que pagava à vista. Fácil foi portanto iludi-lo.

Na ocasião em que as duas primas esperavam de carro na Rua da Quitanda, o lacaio vinha da casa do sapateiro, o
qual
vexado com a pressa, esquecera as recomendações de fechar bem o embrulho.

As pretensões de Horácio vieram pouco depois arrefecer a amizade das duas primas: já não se viam tão amiúde; mas
não
obstante Amélia continuou a prestar a Laura o mesmo serviço, e essa, coagida pela necessidade, foi obrigada a
aceitá-lo.

Iam as coisas por esse teor, quando teve lugar o baile do Azevedo.

Depois da primeira quadrilha, Amélia foi ao toucador. Era este em uma sala que dava para o jardim. Aproximando-se


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de uma
janela entreaberta, obscurecida pela sombra do cortinado da cama, viu a moça os dois amigos no momento em que
eles
vieram sentar-se no banco, justamente colocado por baixo da janela.

A casa era abarracada. Amélia encostada no portal da janela, descobria os dois cavalheiros por entre a folhagem, e
ouvia
distintamente suas palavras.

Aí, imóvel, mas agitada por comoções diversas, escutou ela a história do pé e a história do sorriso. Já os dois amigos se
tinham afastado, e a moça permanecia no mesmo lugar como estática.

A narração de Horácio, e as observações que fizera Leopoldo a esse respeito, revelaram à moça uma coisa que já
anteriormente se havia apresentado, embora indistinta, vaga e confusa a seu espírito.

O que Horácio amava nela, não era mais do que uma forma, um capricho, um sonho de sua imaginação enferma. Ela
compreendeu essa aberração dos sentidos em um homem gasto para o amor e saciado de prazeres. A mulher era para
o leão
uma coisa comum e vulgar, incapaz de produzir-lhe emoções fortes. Tinha-as admirado de todos os tipos e de todos os
caracteres. Seu coração exausto precisava de alguma coisa nova, original e extravagante.

Amélia compreendeu isto, não por uma análise, que seu espírito casto não poderia fazer, mas por uma intuição
d,alma.

Quando de novo encontrou Horácio no baile, suas maneiras não podiam que se não ressentissem do estado de seu
coração.
Tratou o leão secamente; mas logo tornou-se amável; ocorreu-lhe uma idéia; quis pôr à prova o amor do noivo, antes
de
confiar-lhe seu destino.

Foi na sua alcova, durante a insônia, que ela recordou-se da história de Leopoldo, e comparou seu amor ao de
Horácio.
Repassando na mente as palavras comovidas do primeiro, pensando naquele afeto tão desprendido das misérias
humanas, tão
d,alma, Amélia sentia-se como purificada dos desejos do sedutor.

Esse amor puro e imaterial era um batismo para seu coração virgem.

A moça conheceu que o engano de Leopoldo provinha de uma ilusão da vista, no momento de entrar no carro com
Laura;
ilusão confirmada pela presença do lacaio na loja do sapateiro. Chegou a estimar esse incidente que pôs em relevo a
alma
nobre e generosa do mancebo.

Acudiu-lhe à lembrança sua primeira conversa em casa de D. Clementina. As palavras que então lhe pareceram
ininteligíveis,
tinham agora um sentido. Compreendia toda a sublimidade do coração que dizia com uma profunda convicção:

-- Sinto-me capaz de amar o horrível, sinto-me capaz de nutrir uma dessas paixões mártires, de amar o anjo ainda
mesmo


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encarnado no aleijão.

-- Esse me ama realmente, a mim, e não à sua fantasia! murmurou a moça com tristeza.

No dia seguinte, depois de uma noite de insônia, preparou-se para receber Horácio e submetê-lo à prova. O Matos
conservava um par das antigas botinas de Laura, o qual lhe fora para modelo. Mandou Amélia buscá-lo; e encheu-o
de
algodão para acomodar nessa enormidade o seu mimoso pezinho.

O bordado do bastidor foi expressamente inventado. Procurando uma letra para indicar a pessoa a quem destinava o
pretendido presente, insensivelmente traçou um L. Era a inicial de Laura, que lhe acudira à mente; ou era a lembrança
de
Leopoldo, que lhe esvoaçava ainda na imaginação? Foi uma e outra coisa. Serviu-se do pretexto da amiga para
evocar o
nome do homem, que tão profundamente a amava.

Depois da cena que teve lugar na tarde do jantar, Amélia arrependeu-se. Receava ter-se excedido; bastava-lhe matar a
ilusão
do mancebo, não devia ter excitado o horror. Mas o afeto de Leopoldo a tornara exigente; ela queria ser amada por
Horácio
da mesma forma, com aquela sublime abnegação.

Durante alguns dias, alimentou a esperança de conservar a afeição do noivo, e regozijava-se com a idéia da surpresa
que lhe
guardava.

A ausência do leão a foi desenganando de dia em dia. Travou-se então uma luta em seu espírito. Devia esquecer o
homem
que não amava nela senão uma fantasia?

O tom de Horácio na última noite a irritou. Seu amor-próprio indignou-se com o menoscabo do moço, e súbita
revelação de
sua alma lhe advertiu que esse casamento causaria sua desgraça.

No dia seguinte ao do rompimento, Amélia foi, como havia dito na véspera, à casa de D. Clementina. Era a primeira
vez que
tornava a ver Leopoldo depois do baile.

Estiveram juntos alguns momentos. Como de costume Leopoldo falou, e a moça embebeu-se daquelas palavras
apaixonadas
como de um eflúvio suave.

Em um momento de pausa, disse Amélia:

-- O senhor passou por nossa casa na terça-feira?

-- É verdade. Por que pergunta?

-- Eu estava no jardim. Vi-o quando passava; cuidei que ia entrar.



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-- Não me animava.

-- Por quê?... Mamãe já lhe ofereceu nossa casa.

-- Tenho receio de ser importuno.

-- Pouco saímos agora; à exceção das noites que passamos aqui, estamos sempre sós; mamãe lendo e eu tocando ou
fazendo
algum trabalho de lã.

-- E ninguém mais? perguntou Leopoldo, fitando na moça um olhar interrogador.

-- Ninguém! respondeu Amélia em tom grave.

Leopoldo ficou suspenso, buscando compreender o pensamento da moça. Era mágoa do bem perdido, ou temor do
mal
frustrado, que assim lhe anuviara a fisionomia?

Mas o sorriso prazenteiro iluminou o semblante da moça:

-- Sabe? Naquela noite do baile, me contaram uma história muito interessante, disse ela.

-- Não se pode saber?

-- O senhor pode. Foi a história de um sorriso, disse Amélia sublinhando a palavra com um gesto faceiro.

-- Quem lhe contou? Foi ele?

-- Foi o senhor.

-- Eu?

-- O senhor mesmo. Já não se lembra?

-- Quer gracejar?

-- O senhor estava no jardim conversando com seu amigo, e eu na janela do toucador.

Leopoldo adivinhou.

-- Então ouviu tudo?

-- Tudo!...

-- E... perdoou-me?

-- Não; não tinha de quê, mas...

E seus belos olhos límpidos repousaram no semblante do moço.



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-- Mas compreendi!

Nesse momento D. Leonor chamou Amélia.

                                              XIX

Quando recobrou-se da surpresa em que tinha ficado, Horácio não achou em si mais do que o desejo veemente e
irresistível
de possuir o ídolo por tanto tempo sonhado.

-- Serão meus! murmurou consigo. Serão meus a todo preço. Se for necessário um escândalo, não hesitarei. Mas
Amélia não
deve ter-se esquecido de mim já tão depressa; ela me tinha afeição. Vou pedir-lhe perdão de meu engano.
Sujeitar-me-ei a
todas as condições. Que sacrifícios são bastantes para pagar a felicidade de beijar aqueles dois mimos da natureza!

Instintivamente Horácio seguiu na direção da casa do Sales, com intenção de restabelecer as relações interrompidas.
Não
sabia ele de que modo se houvesse em tal empenho; fiava da inspiração do momento.

Já não estava o negociante no escritório; nesse dia se retirara mais cedo.

Malograda sua esperança, o leão foi caminhando pela Rua Direita sem direção, como quem não sabe o que fazer. O
instinto
que no deserto guia o rei dos animais à sebe odorífera onde retouçam as gazelas, o conduzia naturalmente para a Rua
do
Ouvidor.

Tinha chegado à esquina, quando passou defronte um moço, que seguiu pela calçada Carceler. Horácio
acompanhou-o com
a vista, querendo nele reconhecer seu amigo Leopoldo que havia cerca de um mês não vira.

Se com efeito o moço era Leopoldo, tinha ele sofrido grande transformação. Em vez do rapaz descuidado no seu traje,
brusco em suas maneiras, sempre de cabelos arrepiados e barba revolta, aparecia um cavalheiro de boa presença, com
a
sóbria elegância que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa espécie de elegância é apenas um ligeiro perfume, e
não uma
incrustação como a que usam os moços à moda.

Com seu fino tato e longa experiência, Horácio, reconhecendo o amigo, adivinhou o segredo daquela súbita
metamorfose. Ele
sabia que só há um condão capaz de produzir tais encantos: é o olhar da mulher amada e amante.

Ame alguém e não saiba se é retribuído. Toda sua existência se projeta nesse impulso d'alma, que se arroja para outro
ser e
anseia por nele infundir-se. Vive-se fora de si mesmo, alheio a seu próprio eu; como o peregrino perdido longe da
pátria, o
homem exilado de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um abrigo.

Desde, porém, que o homem tem certeza de ser amado, em vez de expandir-se, recolhe-se e concentra-se para


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saturar-se de
felicidade. Já não se alheia e esquece de si; ao contrário, sente-se elevado acima do que era; respeita em sua pessoa o
homem amado.

Nessa ocasião é natural a cada um observar-se constantemente e julgar de si com extrema severidade. Surgem
aspirações
estranhas; o fraco lembra-se de ser um herói; o filósofo inveja a beleza do casquilho; o espírito positivo habituado a
voar terra
a terra bate o coto das asas para remontar-se ao ideal da poesia.

Não é só no homem que se opera essa metamorfose: mas em toda a natureza. Quando se arreiam os pássaros de sua
mais
bela plumagem, quando gorjeiam as melodias mais brilhantes, se não é na quadra dos amores?

Vendo Leopoldo parado na calçada Carceler, Horácio dirigiu-se com disfarce para aquela parte, com intenção de
travar
conversa e esclarecer de todo em todo o mistério. Foi trabalho perdido; o moço acabava de saltar em um tílburi, que
rodava
já pela Praça de Pedro II.

Desapontado, voltou Horácio sobre os passos.

-- Amélia o ama!... Ou pelo menos ele o acredita!

Sorriu-se o leão.

-- Que fenômeno curioso produz o despeito na mulher! É uma semelhança da luz reflexa. Irritado pela decepção,
humilhado
em sua vaidade, o amor da mulher desdenhada refrange como o raio do sol repelido por corpo brilhante e vai
impregnar-se
em outro homem. Ela cuida sentir por esse plastão uma paixão ardente, que nada mais é do que o ímpeto de seu
despeito.
Seria capaz de conceder a esse comparsa o que recusaria à afeição mais terna e extremosa. O assomo do ciúme, supõe
ela
ser veemência da afeição, e confunde com os extremos de amor o delírio da vingança. Amélia está passando por esta
crise
naturalmente. Leopoldo foi o plastão; ela o ama com todo o furor do ódio que me tem.

Outro sorriso frisou o lábio do leão.

-- Ela me odeia! Ora!... O ódio o que é senão a efervescência do amor? O afeto suave e terno é como o moscatel de
Setúbal
ou o vinho de Constança. O amor fero e irado é como o champanhe que ferve e espuma.

Chegando à casa, Horácio escreveu a Amélia uma carta, que apenas continha estas palavras:

"Deve estar satisfeita, pois me tem de novo a seus pés, e desta vez humilde e suplicante. A melhor coroa do triunfo é o
perdão."

Saindo o leão a espairecer, dirigiu os passos para a casa do Sales; esperava encontrar algum criado que se incumbisse


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de
entregar a carta.

Quem sabe? Talvez nessa mesma ocasião se decidisse de sua sorte. A moça lhe permitiria falar-lhe.

Era noite fechada; o céu, carregado de nuvens, anunciava próxima borrasca. A frente da casa do negociante estava às
escuras; contudo quem observasse bem, perceberia a coar-se pelos interstícios das janelas um tênue reflexo de luz
interior.
No portão da chácara a meio cerrado, ninguém aparecia.

O leão penetrou no jardim. Nesse momento um carro parou à porta da casa: três pessoas saíram dele. Em um Horácio
viu,
estremecendo, roupas de sacerdote. Só então refletiu o moço no aspecto soturno do edifício. Inquieto, sobressaltado,
adiantou-se pelo jardim na esperança de encontrar pessoa a quem interrogasse.

As janelas laterais estavam esclarecidas; e pelo jogo das sombras no quadro iluminado, conheceu o moço que reinava
no
interior alguma agitação.

Que fazer? Apresentar-se na casa, depois do que passara, e antes de qualquer explicação. não era razoável.

A dois passos ficava uma frondosa mangueira, em cujos galhos tinham fabricado uma espécie de belveder ou
caramanchão.
Conduzia ao alto uma escadinha de caracol cingindo o tronco da árvore.

Por acaso avistou o leão a mangueira, e subindo sem hesitar, achou-se justamente fronteiro às janelas iluminadas. Em
princípio
a claridade súbita ofuscou-lhe a vista, e não pôde ele distinguir o que se passava no interior.

Mas afinal o deslumbramento dos olhos cedeu ao deslumbramento d'alma.

Ele via, e duvidava.

Um altar erguido, círios acesos, o sacerdote oficiando, Amélia e Leopoldo de joelhos, ao lado Sales, D. Leonor, e dois
amigos que serviam de testemunhas: eis o quadro que se ofereceu aos olhos de Horácio. Tinha visto na comédia da
vida
muitos lances dramáticos, mas nenhum tão imprevisto e curioso.

A surpresa do leão provinha de um engano seu. Ele acreditava que Amélia o tinha amado, quando a moça não sentira
por ele
mais do que o desvanecimento de ver cativo de seus encantos o rei da moda, o feliz conquistador dos salões.

Quem Amélia amou desde o princípio, foi Leopoldo. A vaidade, o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a
seduziam
por momentos, e rendiam ao capricho de Horácio. Mas passado esse enlevo, sua alma sentia a atração irresistível que
a
impelia para o seu pólo.

Disso que durante dois meses passava na vida íntima da moça, ela própria não se apercebia; foi depois da cena do
baile, que


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ela entrou em si, e compreendeu as sublevações recônditas de sua alma, e o drama que aí se agitava desde muito.

Leopoldo começara a freqüentar a casa de Sales poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas almas, por
tanto
tempo separadas, só esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra. Às tardes, no
jardim,
entre cortinas de flores, elas celebravam esse místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel, porque se faz no
seio do
Criador.

Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram se fizesse inteiramente à capucha, e sem
prévia
participação. A razão desse empenho, só Amélia a sabia e nunca a disse. Eram escrúpulo de seu pudor: depois do que
tinha
acontecido, não queria que lhe dessem outra vez o título de noiva.

Terminada a cerimônia, e feitas as felicitações do costume, correram os minutos em agradável conversação.

Eram onze horas, quando Leopoldo entrou no toucador em que sua noiva o esperava. Sentada em uma
conversadeira,
Amélia sorriu para seu marido; porém através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o tremor
involuntário
que agitava seu lindo talhe.

-- É meu presente! disse ela com timidez.

E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de seda, atado com fita azul.

Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de cetim branco, os mesmos que Amélia começara a bordar no dia seguinte ao baile.

O moço enleado, não compreendia. Insensivelmente seu olhar desceu à fímbria do roupão. Sobre a almofada de veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas de dois pezinhos divinos.

Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra.

-- Calce!

Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva.

O temporal, desabando nesse momento, bateu com violência nos vidros da janela, que fechou-se.

Horácio desceu do seu observatório, e escalando a grade de ferro do jardim, ganhou a casa, onde chegou todo alagado.

Enquanto filosoficamente esperava que seu criado lhe preparasse uma xícara de café, abriu um livro, que acertou ser La Fontaine.


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Leu ao acaso: era a fábula do leão amoroso.

-- É verdade! murmurou soltando uma fumaça de charuto. O leão deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazela.

N.B.-- Escrevo tílburi, champanhe, etc. porque entendo que devemos imprimir certo cunho português nas palavras estrangeiras adotadas pelo uso. Assim fizeram nossos antepassados, escrevendo trumó, trenó, bufete e tantas outras palavras de origem francesa.


FIM - FIM - FIM






...

A Pata da Gazela - Parte 1 de 3 - José de Alencar


A Pata da Gazela - Parte 2 de 3 - José de Alencar


A Pata da Gazela - Parte 3 de 3 - José de Alencar



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