quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Os últimos Dragões - Zoologia


OS ÚLTIMOS DRAGÕES - Zoologia


Confinados em algumas ilhas da Indonésia, os maiores lagartos do mundo representam uma exceção como principais predadores de um nicho ecológico, titulo que quase sempre cabe aos mamíferos.



Um pai e seus dois filhos sentaram-se na selva, arrumando a madeira que tinham acabado de cortar. O calor úmido, o silêncio e a monotonia do trabalho haviam relaxado tanto a sua atenção que nem sequer notaram o lagarto gigante. Aparentemente saído do nada, o monstro avançou chicoteando a língua bifurcada, arrastando o longo e tenso corpo de 2 metros. Quando os três dispararam em fuga, um dos meninos tropeçou num galho baixo e infelizmente caiu. O monstro o agarrou pelas nádegas e com uma dentada arrancou enorme naco de carne. Antes que desse uma segunda mordida, o lagarto foi afugentado, mas o dano já estava feito. O jovem sangrou durante meia hora e morreu diante do olhar desesperado do irmão e do pai.
Essa cena dramática não está em nenhum livro de ficção. É um fato real, narrado pelo biólogo e especialista em evolução Jared Diamond, da Universidade da Califórnia, na revista americana Discover. O monstro ardiloso e faminto que ele descreve mora nas densas florestas quentes da Indonésia e vive até 100 anos. Os cientistas se referem a ele como Varanus komodoensis, ou simplesmente "monitor" (um dos vários grupos de lagartos do planeta). Na boca do povo, a voracidade do grande caçador valeu-lhe o apelido de "dragão". A expressão dragão de Komodo veio da ilha onde foi identificado pela primeira vez, em 1910.Seja qual for o nome, trata-se do maior lagarto do mundo, que na maturidade alcança 3 metros de comprimento e 135 quilos de peso. Acostumado a comer pequenos mamíferos, ele não despreza vez por outra uma bom prato de humanos, sobretudo na idade adulta. Além do infeliz ajudante de lenhador, relatam-se vários casos de camponeses indonésios devorados e mesmo alguns turistas europeus. Quando foi descoberto, no começo do século, o dragão de Komodo intrigou os cientistas. Eles se perguntavam o motivo de terem persistido no mundo animais primitivos e pecilotérmicos - que não possuem mecanismos próprios para aquecer o corpo. Afinal, as vantagens dos animais de sangue quente são várias e claras. Os mamíferos podem correr muito mais rápido e por mais tempo, o que ajuda muito na perseguição às presas. Além disso, os mamíferos crescem em ritmo mais acelerado que os répteis, podem caçar à noite e não dependem de longos banhos de sol para obter energia. É digno de nota, portanto, que o mundo tenha mais répteis do que mamíferos, em número de espécies. É ainda mais intrigante que o monitor de Komodo seja o líder de um nicho ecológico - o maior predador da região onde vive -, quando em quase todo o mundo esse posto cabe a leões, tigres, ursos ou lobos. Ou seja, mamíferos de sangue quente.
Atribui-se ao zoólogo Walter Auffenberg, da Universidade da Flórida. a solução de alguns desses enigmas. Antes de mais nada, o dragão não vive somente em Komodo, que é apenas uma entre as diversas pequenas ilhas dominadas por ele. As três maiores são Celebes, Timor e Flores: esta última, aliás, possui muito mais indivíduos que todas as outras. Visto desse ângulo, um nome mais correto seria "dragão de Flores e ilhas vizinhas" - se não fosse tão desajeitado. Auffenberg verificou que, devido ao baixo metabolismo, o dragão de Komodo é um bicho lento e cansado por natureza. Os mais rápidos chegam a, no máximo, 11 quilômetros por hora - e não agüentam correr mais do que algumas dezenas de metros. Não atacam de noite, período em que se escondem em buracos para se manter aquecidos, e gastam a manhã estendidos preguiçosamente ao sol.
Essa presumível indolência pode sugerir que ele seja um péssimo caçador. Ledo engano. Ao sair do ovo, o dragão tem cerca de 30 centímetros e pesa apenas 90 gramas. Mas, na idade adulta, alguns ultrapassam 3,30 metros e excedem 230 quilos. Esse crescimento todo não vem de nenhum lugar, senão de boas refeições. Para um dragão "baby" a "boa refeição" pode estar numa simples árvore. Ou melhor. nos insetos que nela habitam. Já os de médio porte adoram ratos e pássaros E os maiores se deliciam com veados selvagens ou então porcos, cabritos e cavalos. Estes últimos são criados para subsistência pelos moradores das ilhas. Daí surge uma verdadeira guerra entre o homem e o réptil, que ataca sorrateiramente os terreiros das pequenas propriedades. E uma curiosidade: quando falta alimento, os dragões não hesitam em tornar-se canibais, deglutindo exemplares de sua própria espécie - os filhotes em primeiro lugar. Nas caçadas, o lagarto mostra sua esperteza. Incapaz de manter uma longa perseguição, como fazem leões ou lobos, ele usa inteligentes táticas. Prepara emboscadas, aproximando-se furtivamente ou esperando na beirada das trilhas naturais, até que a presa passe por perto. Só então desfere seu bote. Tem também uma aguçada capacidade para espreitar fêmeas prenhes, das quais rouba filhotes assim que eles nascem, enquanto a mãe ainda está sem forças para defendê-los
Além de matar as vitimas para imediata degustação, o monitor de Komodo costuma varrer a floresta em busca de animais mortos, em decomposição, tal qual fazem as hienas na savana africana. A diferença é que elas aproveitam restos de animais abatidos por leões e outros predadores, enquanto os lagartos comem a carniça de suas próprias presas. Isso acontece porque nem sempre eles se dão ao trabalho de ir até o fim numa caçada. Às vezes, os lagartos apenas ferem sua vítima e deixam-na fugir, confiando que ela morra em algumas horas.
A garantia de que o animal atacado vá realmente morrer vem dos seus dentes. Extremamente afiados -"como os dos mais perigosos tubarões", segundo Jared Diamond - eles causam fluentes hemorragias. Como se isso não fosse suficiente, também agregam bordas de bactérias agressivas, que contaminam a vítima da mordida. Mais cedo ou mais tarde, ela sucumbe pela falta de sangue ou por uma virulenta infecção. Depois, basta ao dragão usar seu apurado faro para encontrá-la. Ele é capaz de sentir o cheiro da carniça a quilômetros de distância. E não é preciso ser um dedicado pesquisador para perceber isso. Os guias de turismo da Ilha de Komodo há muito tempo costumam expor cabras mortas ao sol tropical para atrair os lagartos até à vista dos visitantes. Sem contar que, vez por outra, os moradores deparam com os lagartos fuçando no cemitério da vila.
"Ver um dragão de Komodo comer é uma verdadeira aula de como não se comportar à mesa", diz Jared Diamond. O lagarto come atabalhoadamente, em grandes dentadas, sem mastigar e babando para todos os lados. Certa vez, os cientistas observaram um dragão de 50 quilos devorar um porco inteiro de 31 quilos em apenas 17 minutos. Outros podiam ingerir 2,3 quilos de carne por minuto. Toda essa pressa tem razão de ser. É essencial terminar a refeição antes que outro lagarto espertinho sinta o cheiro e apareça para jantar. Aí também surge uma diferença em relação às hienas. Ao contrário das carniceiras africanas, o dragão da Indonésia come também os ossos do animal abatido, incluindo o crânio, com dentes, chifres e o que mais houver.
As duas questões que mais desafiam os estudiosos, no entanto, se referem ao passado do monitor de Komodo e, para elas, só existem teorias, por enquanto. A primeira: o que comiam os antiquíssimos répteis alguns milênios atrás? Hoje, eles parecem perfeitamente adaptados ao seu habitat.Mas os porcos, cabras, veados e cavalos não existiam em Flores, Komodo, Celebes e Timor, até serem introduzidos pelo homem. E certamente a população de ratos e pássaros não seria suficiente para proporcionar a evolução de tamanha comunidade. A resposta pode estar em fósseis de elefantes achados em Flores nos últimos anos. Não exatamente os elefantes de hoje em dia, mas duas espécies extintas, uma semelhante aos mamutes, e outra de elefantes nanicos, chamados "pigmeus". Esses mamíferos teriam garantido o alimento aos répteis até que os caçadores humanos passassem a habitar a ilha, dizimando os paquidermes. Para alívio dos dragões, enquanto acabavam com os elefantes, os humanos traziam para as ilhas animais domésticos e selvagens que acabariam se multiplicando e garantindo o sustento.A segunda questão: por que nenhum mamífero tomou para si o topo da escala de predadores, como ocorre nas servas de todo o mundo? Por que não há leões, tigres, ursos ou lobos nas quatro ilhas? O paleontologista Tim Flanery formulou a melhor hipótese, usando sua terra natal, a Austrália, como base do raciocínio. Naquele país, quem dita as ordens são os répteis, sobretudo as cobras. Mas nem sempre foi assim. Fósseis demonstram que em algum lugar do Pleistoceno (época que durou até há 10 000 anos) havia pelo menos um marsupial de bom tamanho, chamado lobo-da-tasmânia (não confundir com o diabo-da-tasmânia, que é um tipo de marsupial da família Dasyuridae). Além disso, por incrível que possa parecer, grandes cangurus carnívoros percorriam a ilha.
E como eles desapareceram? O que aconteceu na escala da evolução para tirá-los da ilha? Para matar essa charada, Flanery aplicou o conceito de pirâmide ecológica à realidade natural daquele país. Ela mostra que a população de uma espécie numa região varia de acordo com a dos animais ou vegetais de que ele se alimenta 
Se existe pouca vegetação, é provável que sobrevivam poucos herbívoros e um número ainda menor de carnívoros, que deles se alimentam. Um leão africano, por exemplo, depende da carne de várias zebras, que precisam, por sua vez, de moita vegetação para se alimentar. Ora, em uma população pequena de leões, qualquer epidemia ou fenômeno climático pode exterminar todos os indivíduos de repente. Isso sem contar a própria deterioracão genética ao longo das gerações, pois animais parentes acabam se cruzando com muita freqüência, o que causa defeitos congênitos.Isso provavelmente ocorreu com os mamíferos predadores da Austrália. Apesar de seus 7,6 milhões de quilômetros quadrados, é um lugar pequeno, do ponto de vista da vida selvagem, pois 90% de seu território é árido e sujeito a fenômenos climáticos bruscos - sobre tudo o El Niño. Assim, havia pouco alimento e populações reduzidas de carnívoros de Sangue quente. Uma peste ou seca foi suficiente para dizimá-los. O mesmo vale para as pequenas ilhas da Indonésia, que não tinham alimento suficiente para manter o topo da pirâmide.
Resta então descobrir como os répteis predadores safaram-se dessa armadilha natural. Tim Flanery tem uma resposta para isso também: o sangue frio. Sim, pois nem sempre o baixo metabolismo é uma desvantagem. Se por um lado faz lagartos e cobras serem lentos e dependentes dos raios de sol, por outro ele os torna capazes de sobreviver com menos comida, pois não precisam alimentar mecanismos termorreguladores em seu organismo. O dragão de Komodo sobrevive perfeitamente com 13 quilos de carne por mês, enquanto um leão ou lobo de grande porte precisa de 136. Como resultado, as populações de répteis cresceram e resistiram às eventuais doenças ou desastres do clima.
Em outras palavras, a característica que sempre levou as pessoas a considerar os lagartos primitivos pode ser a mesma que os manteve vivos e soberanos no ecossistema de Komodo e das ilhas vizinhas. Para Jared Diamond, uma boa forma de mostrar as vantagens e desvantagens entre mamíferos de sangue quente e répteis de sangue frio é fazer uma analogia com automóveis. Os leões, ursos ou lobos são como Ferraris, Porsches e Lamborghinis: bonitos, potentes, correm muito e, por isso, precisam de muita gasolina. Já os répteis são como Fuscas: lentos, modestos, mas extremamente econômicos. É fácil deduzir quem predomina durante as crises de combustível. E de alimento.



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