sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O Cabeleira - Parte 4 de 4 - Franklin Távora


O Cabeleira - Parte 4 de 4 - Franklin Távora



Os dois desconhecidos, um salvo das águas, outro salvo do tiro iminente, tinham corrido a 
refugiar-se no seio da espessura.

- E agora, Luisinha, terá ainda alguma coisa que dizer de mim ? - perguntou José com 
ingenuidade infantil.

- Os meus rogos foram ouvidos por aquele que dali nos vê e ouve como pai misericordioso. O 
medo que eu tenho agora é que as tropas o peguem e o roubem de meus braços ! Oh ! fujamos já deste lugar. Quem sabe se aqueles homens não correram a denunciá-lo ! Misericórdia, meu Deus ! 

Que fazemos ainda aqui ?

Puseram-se no mesmo instante a caminho na direção do ocidente.


Capítulo XIV

O sol chegou ao horizonte, e as sombras começaram a vasta solidão.

O Cabeleira parou ao pé de um serrote, e escutou.

Um ruído estranho vencia a distancia e vinha ecoar aos ouvidos dos fugitivos.

- Estamos perto - disse ele. - Não houves este barulho? São as águas do Tapacurá que caem 
no Capibaribe. De madrugada atravessaremos este rio, e se bem andarmos poderemos estar 
depois de amanhã a esta hora em Goitá, terra do Cabeleira.

- Ai ! disse a moça. - Não posso mais.

Tinha as faces em brasa, e os olhos, injetados, acusavam a febre ardente que a consumia 

desde a 
noite anterior.



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- Não esmoreças, meu bem - disse o mancebo. - Havemos de ser felizes.

- Onde ? Neste mundo ? - perguntou ela com incredulidade. - Na terra não há felicidade, 
Cabeleira; na terra só há dores e prantos, saudades e remorsos.

- Pois eu te mostrarei que se pode ser feliz no deserto, no fundo das brenhas. Não matarei mais 
a ninguém, meu amor. Bem dentro da mata virgem, em um lugar que só eu conheço, há um olho 
d'água, que nunca deixou de correr. Junto deste olho d'água há uma chã, no fim da chã um 
bosque, e por detrás do bosque uma montanha imensa que rompe as nuvens. O olho d'água nos 
matará a sede todo o ano, na chã levantarei uma casinha de palha para nós; no meio do bosque 
abrirei um roçado que nos há de dar farinha, macaxera, feijão e milho com abundância; e 

quando 
a seca for muito forte, como esta, subiremos a serra, e aí passaremos dias melhores.

- Se assim fosse... Se assim pudesse ser... - balbuciou Luísa.

- Por que não ?

- Por que ? Porque a desgraça aí está para desmentir o seu sonho, Cabeleira.

- Olha, Luisinha. Os homens me deixarão logo que eu não os ofender mais. Não sei ainda 
trabalhar, mais hei de saber. Tu me ensinarás, e eu aprenderei.

O Cabeleira disse estas palavras com a ingenuidade e doçura de uma criança. Luísa não se 

pôde 
conter; correu a ele, e pela segunda vez o apertou em seus braços e cobriu com as suas 

lágrimas. 
Ele abraçou-a e beijou-a com a efusão do primeiro amor, que, depois de longamente 

adormecido, 
desperta de súbito com as energias que cresceram durante o sono, e se fizeram forças 

invencíveis.

- Ali adiante - disse o Cabeleira apontando para um embastido de árvores que aparecia ao pé 
de um serrote - poderemos passar a noite, a nossa primeira noite de noivado.

Luísa estremeceu, e supirou. Se não se tivesse arrimado ao braço do bandido, teria caído.

- Triste noivado, Cabeleira, triste noivado, que se cobre de prantos e luto.

- Não te amofines assim. O Cabeleira não é mais o assassino, Luisinha. O ladrão, o matador já 
não está aqui ao pé de ti. Quem aqui está é um homem que quer ser um homem de bem.

Deram o andar para o lugar indicado.

A este tempo o sol tinha desaparecido, e o horizonte estava já envolto nas sombras precursoras 

da 
noite. Nem leve brisa movia as folhas dos matos mudos e quedos.

Os perfis das árvores solitárias desenhavam-se, no fundo do pavoroso ermo, como perfis de 
fantasmas.

Os fugitivos entraram no embastido, e depois de alguns passos deram em uma clareira, espécie 

de 
asilo reservado pela natureza aos peregrinos que vagam sem rumo e sem guia.

Uma fogueira foi logo improvisada para terem luz durante a noite e evitar que se aproximassem 

as 
onças cujos uivos medonhos começaram a repercutir nas quebradas e gargantas das serras.


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Procurava o mancebo galhos secos para entreter o fogo quando, ao pé de uma árvore que se 
levantava a um lado da clareira, deu com uma tosca cruz de pau cravada na terra.

Era quase noite, e, no meio das sombras crepusculares, confundiu ele ao princípio o emblema 

da 
redenção com um tronco de árvore cortada por algum viajante transviado, ou despedaçada pela 
tormenta.

Quando reconheceu o sagrado emblema, o Cabeleira, suspenso pela surpresa, sentiu-se 

abalado ao 
mesmo tempo por uma comoção desconhecida. No lugar ocupado pela cruz tinha ele 

assassinado 
um ano antes um marchante de gados para lhe roubar o dinheiro que trazia da feira em Santo 
Antão.

O bandido voltou o passo atrás horrorizado e correu em busca da moça, gritando, como um 
menino:

- Luisinha ! Luisinha !...

A moça aflita sem saber por que, lançou-se ao seu encontro e o recebeu em seus braços.

- Ninguém te há de tirar daqui - disse ela, suspeitando que o queriam prender. - Não, não, tu 
me pertences. Deus ajudou-me a parar-te no caminho do bem. Ninguém tem mais o direito de te 
perseguir.

- Eu o vi lá outra vez, Luisinha. Ele olhou-me silencioso e triste.

- Ele quem ? - perguntou ela.

- O marchante; o velho a quem assassinei para roubar. Lá está ele com os cabelos brancos 
ensopados em sangue.

- Meu Deus ! Meu Deus ! - exclamou a moça. - Cometeste ainda um assassinato, Cabeleira ? 
Meu Deus, quanto sou infeliz !

- Não, não foi agora; faz um ano; foi ali, junto do jatobá. Olha; não vês aquela cruz de pau 
enterrada no chão ? Foi aí que matei o sertanejo.

É impossível descrever a comoção de ambos. O sítio, a hora, tudo concorria para dar à 

impressão 
uma intensidade que ia ao fundo do coração, à medula dos ossos.

- Estou-me lembrando de tudo - prosseguiu o bandido. - Eu estava sentado, com o clavinote 
atravessado nas pernas debaixo daquele pé de pau. Ouvi as pisadas de um cavalo, e o estratar 
garranchos e cipós que se quebravam. Meti-me um pouco mais para dentro, a fim de ver, sem 

ser 
visto, quem é que vinha. Eu estava com fome, e não tinha dinheiro nenhum. "Se fosse um 

homem 
que trouxesse dinheiro", pensei eu, "estava muito bem !" Neste momento o cavaleiro passou 

por 
diante de mim. Trazia chapéu novo, um gibão de pano fino azul, botas lustrosas e esporas de 
prata; montava um cavalo ruço pombo, gordo e passeiro. Conheci logo que era um marchante. 
Levei o bacamarte ao rosto, e quando o cavaleiro quebrou ali à direita para tomar o vau do rio, 
fiz-lhe fogo na cabeça. Corri com a minha faca na mão ao lugar onde ele havia caído. Estava 
morto; a bala tinha-lhe entrado ao pé da orelha direita e saído acima do olho esquerdo. Ambos 

os 


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olhos estavam da banda de fora, o cabelo e a barba nadavam em sangue. Tirei-lhe um maço de 
patacões que trazia em um dos bolsos do gibão, o punhal aparelhado de prata, os botões de 

ouro, 
o relógio e as esporas; e meti-me no mato virgem.

Luisinha mal pôde ouvir esta história que foi rapidamente contada, com vivas e medonhas 

cores.

- Misericórdia, Senhor ! - exclamou ela.

- Ele lá está, Luisinha, de pé, com o chicote na mão, olhando para mim com os seus olhos 
mortos, à flor da cara.

A moça meditou um momento.

- Vamos - disse por fim, encaminhando-se para a sepultura; - vem comigo.

- Oh! não; aquela visão me aterra. Nunca tive tanto medo, eu que vi imensos cadáveres 
banhados em sangue aos meus pés.

- O medo passará em um instante, Cabeleira.

- De que modo, Luisinha ?

- Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz.

- A rezar ?

- Assim que tiveres rezado um Padre Nosso e uma Ave-Maria em tenção do morto, sua alma 
desaparecerá de tua vista. Vamos, Cabeleira.

O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia, com seu vestido azul e seu 
lenço branco, passado em torno do pescoço, o anjo da prece na solidão.

Ajoelharam-se ao pé da cruz, Cabeleira com a face quase oculta por seus longos cabelos 

negros, 
Luísa com a cabeça erguida, e os olhos postos na frouxa claridade do sol que se desvanecia na 
abóbada celeste. Defronte deles a cruz ressequida, solitária e muda testemunhava aquela cena 
com a solene indiferença dos símbolos sagrados que é muito mais expressiva e eloqüente para 

os 
seus crentes do que as vozes da mor parte dos sacerdotes da respectiva religião.

- Reza, Cabeleira - disse a moça ao matador assombrado.

- Ai, Luisinha! Não sei rezar! - disse ele com voz tão sentida e magoada que indicou a pena 
profunda que lhe cortava o coração.

Ele estava na realidade comovido até as entranhas. Superexcitado pela falta de alimentação, 

pelo 
cansaço da jornada, pelo calor do dia, pelas recordações que o afligiam de envolta com o 

remorso 
incipiente, via a cada canto a terrível visão reproduzida na clareira, na selva, nos ares, 

finalmente 
em toda parte aonde volvesse os pávidos olhos.

- Eu te ensinarei - redargüiu Luisinha. - Dize comigo.



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A moça principiou então em voz alta o Padre Nosso.

A voz do bandido, ao princípio titubeante e temerosa, foi-se pouco e pouco animando, e 
elevando.

Quando houverem de passar à Ave Maria, o Cabeleira tinha já os olhos pregados na cruz, e a fé, 
que começava a germinar em seu espírito, elevava-o insensivelmente a regiões desconhecidas, 
onde, sem que ele pudesse explicar como, lhe davam a respirar confortos que só podiam ser 
celestiais.

Da Ave Maria passaram à Santa

Maria e desta à Salve Rainha.

Em cada uma das palavras destas orações achava o bandido uma beleza nova e insinuante que 

lhe 
despertava delicioso sentir.

Seu espírito, que durante vinte anos só conhecera idéias de sangue e morte; seus ouvidos, 

afeitos 
a escutarem palavras licenciosas, insultos, arrogâncias, queixumes e maldições, recebiam 

agora 
doces expressões que anunciavam uma consoladora existência superior.

Do pavor, que trouxera aos pés da cruz, passara a uma fortaleza de animo quase invencível.

Antes de se levantar volveu os olhos em torno de si e não viu mais a visão que o amendrontara, 
havia pouco.

- Oh! Luisinha, como é poderosa a oração ! - disse ele. - Minha mãe, que tantas vezes pos as 
suas contas nas minhas mãos, bem sabia que a oração tem mais força do que os homens e 

vence 
todas as armas ! É por isso que me ensinava a rezar, a mim que só aprendi a tirar a fazenda e a 
vida dos meus semelhantes.

Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira.

Depois de oferecidas estas orações, lavantaram-se os fugitivos, e foram depor cada um seu 

beijo 
aos pés da cruz do ermo.

No bandido já não havia o assassino, havia um espírito contrito, um coração cheio do temor de 
Deus. Uma mulher fraca, tendo ao seu serviço unicamente a benevolência natural, a 

perseverança, 
as lágrimas e um passado quase desvanecido, havia operado uma conversão com a qual 

poderia 
legitimamente orgulhar-se um verdadeiro apóstolo do cristianismo.
Com sua luz suave enchia o deserto o astro das recordações e da saudade. O céu estava azul e 
estrelado. As brisas da noite começavam a mover as folhas do bosque, onde os silvos das 

cobras, 
os pios das aves erradias, os uivos dos animais carniceiros formavam lúgubre e medonha 
orquestra.

Luisinha caiu em uma espécie de sonolência e pouco depois sentiu perturbação mental, e veio-

lhe 
delírio, durante o qual deixou escapar palavras desconexas. A febre que a devorava tinha 
aumentado com a excessiva fadiga, e com a intensidade das impressões do dia. Cabeleira 
estendeu por cima dela a sua véstia de couro, e, profundamente comovido, foi sentar-se ao pé 

da 
fogueira para não a deixar extinguir-se, e para impedir que se aproximassem as onças que não 


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cessavam de ulular em derredor deles, ameaçando devorá-los. A vida no deserto está exposta a 
perigos, que mal compreende o que não nasceu no meio deles; só os compensa a liberdade que 

se 
depara em qualquer dos gozos que aí se logram.

Pela madrugada adormeceu ao peso da fadiga e ao silêncio que foram fazendo em torno de si 

as 
feras. Quando acordou era quase dia. Os passarinhos cantavam com o entusiasmo que 

desperta 
em todos os corações o raiar de um dia de verão no seio da natureza.

Seu primeiro cuidado foi saudar aquela a quem devia a ressurreição de sua alma, outrora em 
trevas aflitivas, agora inundada do suave clarão da piedade cristã.

- Luisinha, acorda - disse ele. - A manhã está fresca. Os passarinhos cantam. A viração tem 
os cheiros do deserto.

Aproximou-se de Luísa tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio, e depôs-lhe nos lábios um 

beijo 
de amor. Os lábios da gentil menina estavam frios, seu corpo gelado. Luísa não pertencia mais 

esta vida.

Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dor que atroou a imensa solidão 
como urro de touro selvagem.

- Morta ! Morta ! Luisinha !

O cadáver da moça escapou-lhe dos braços, mas logo o bandido caiu de joelhos aos pés desse 
corpo inanimado, com o qual tinham falecido todas as suas esperanças de felicidade.

- Luisinha, responde
me - disse ele. - De que morreste, meu amor ?

Levantou-se, deu alguns passos a esmo, e tornou ao leito de ramos que tinha servido de leito 

de 
morte à virgem dos seus pensamentos.

Pegou-lhe das mãos, que beijou uma, duas, inúmeras vezes, examinou-as, examinou o rosto da 
infeliz, e só encontrou aí os vestígios do transito final. Tudo estava acabado para ela. Foi esta a 
verdade cruel que ele viu traspassado de uma pena que se não descreve, e que só ele sentiu 

nesta 
vida.

Sentou-se no chão, e suspendeu o cadáver para o atravessar sobre os joelhos. Um galho da 

árvore, 
que com sua folhagem havia obrigado a moça durante a noite, afastou-lhe o lencinho branco que 
lhe envolvia o pescoço, e indiscretamente descobriu aos olhos do consternado amante seus 

seios 
virgens.

Ao vê-los, soltou este nova exclamação de dor. A chama que Luísa para salvar Florinda do 
incêndio, transpusera a noite anterior, havia deixado uma só chaga no lugar onde a natureza 
tinha-a dotado com um cofre de graças e perfeições peregrinas.

- Queimada ! Oh ! Luisinha, que sofrimento não foi o teu ! Que dores não suportaste em 
silêncio, desgraçada criança ! E como fico eu sem ti, meu amor ? Ai de mim, Luisinha ! Ai de 
mim !



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O ânimo varonil, que sempre se mostrara inteiro e imoto, agora agitado por comoções tão 
violentas, dobrou-se enfim e deu larga prova de fragilidade humana. Dos olhos do bandido 
irrompeu uma torrente de lágrimas. Soluços, como animal bravio, escaparam de seu peito e 
ecoaram pela imensidade ainda em grande parte adormecida. Havia quinze anos que esses 

olhos 
não choravam diante dos mais tristes e lastimosos espetáculos.

- Que noivado o meu ! É o noivado do assassino ! Oh ! meu Deus !

De repente do lado do rio soou um clarim.

A dor sucedeu o susto, e depois o terror no animo do desgraçado mancebo. Só, sem armas, 
arrependido de toda sua vida de crimes, que restava ao Cabeleira naquele doloroso transe ?

O clarim soou mais perto, e com as vozes deste instrumento chegou aos ouvidos do mancebo 

um 
retintim de espadas e facões que indicava, junto com as sobreditas vozes, a existência de um 
corpo militar por aquelas bandas. Andava de feito por ali um dos piquetes do regimento de 
Cristóvão de Holanda, o qual, depois de ter batido algumas matas suspeitas, se recolhia à vila, 
donde havia partido na noite imediata.

Cabeleira depôs o cadáver de Luísa sobre os ramos, e afastou-se para dentro do mato não sem 
novo sobressalto, à vista do risco em que se achava.

Depois de ter desaparecido, voltou novamente e suspendeu em seus braços o corpo com o 

intuito 
de conduzi-lo consigo para dentro da espessura. Mas quando ia a entrar aí com o triste resto do 
seu tesouro, um homem apareceu na extremidade da clareira. Era o Marcolino que, havendo-se 
encontrado com o piquete ao cair da tarde anterior relatara o que havia acontecido junto da 
vazante, e se oferecera para o guiar no rumo do fugitivo.

Este, vendo que a sua vida estava em perigo, e que a perda de um momento podia ser-lhe fatal, 
resignou-se a deixar o precioso despojo, e internou-se de uma vez no mato.

Com pouco uma companhia de soldados penetrou no pouso onde Marcolino já havia dado com o 
corpo de Luísa

- Cheguem, cheguem depressa. Dormiu aqui o assassino. Ali está a fogueira ardendo ainda, e 
aqui a sua própria companheira, que ele deixou morta. Ah ! malvado !

Os milicianos rodearam o cadáver de Luísa sobre cujo rosto não seria difícil descobrir ainda 
vestígios das lágrimas do desgraçado mancebo.

- Perversol Perverso! - exclamaram alguns deles indignados do que viam, mas não sabiam.

- Não satisfeito de ter matado mulheres e meninos no fogo, veio tirar aqui a vida a sangue frio 
àquela que o quis acompanhar.

- Não percamos tempo - observou Marcolino. - Ele deve estar perto daqui. Vamos, minha 
gente, vamos descobrir o assassino enquanto ele não nos escapa.

É verdade. Alto frente. Toca a corneta. Tiririca.



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- Não toques, que se o Cabeleira nos ouvisse, ninguém mais lhe punha o olho em cima, quanto 
mais a mão.

- Se não fosse esta corneta, já tínhamos pegado o cabra - observou Marcolino.

- Qual cabra nem meio cabra. Aquele que tem de pegar o Cabeleira está ainda por nascer.

E entraram na espessura.

Capítulo XV


O Cabeleira desapareceu no mato como desaparece o peixe no seio da corrente caudal.

Os milicianos, bem que homens igualmente rústicos, e conhecedores das florestas, não tinham 
todavia o longo uso da espessura, uso que, ainda neste particular, tornava superior a eles o 
valoroso malfeitor.

Espalharam-se em diferentes direções, a esmo, sem plano, e por isso sem probabilidade de 

bom 
resultado.

O piquete não era numeroso, e vinha quase debandado quando encontrou o Marcolino que 
denunciou o ponto onde havia deixado o fugitivo.

Poucos deram crédito às palavras do matuto, e só por desencargo da consciência alguns se 
prestaram a dar a busca que ele propôs, e que, a seu parecer, não podia deixar de surtir o 

desejado 
efeito.

Gastaram quase o dia inteiro na diligência.

Por fim, dissuadidos de descobrirem o assassino, cada um tomou o caminho mais curto para 

sua 
casa, dando alguns ao diabo o Marcolino por tê-los feito andar para dentro e para fora do mato 
inutilmente, e acreditar em esperanças que não se realizam.

- E veio você fazer-nos perder mais um dia, compadre Marcolino - disse um dos milicianos, 
aborrecido e fatigado do infrutífero lidar. - Nem você chegou a ver o Cabeleira. Viu algum 
rangedor de cachos compridos, e já pensou que era o mameluco.

- Eu não digo uma coisa por outra. Vi-o com estes olhos que a terra fria há de comer. Falei com 
ele como estou falando com você agora. Lá o ele ter voado como passarinho, ou Ter-se metido 
pela terra adentro como tatu ou jararaca, é caso à parte.

- Você viu periquito e cuidou que era arara ou canindé - replicou o miliciano.

- Compadre, você está fazendo pouco em mim. Ora, deixe-se disso, que eu não sou de lérias, 
como você bem sabe. É tão certo que vi o Cabeleira, que até lhe tomei o cavalo que ele me 

havia 
furtado, o meu alazão.

- Pois, então, pode montar no seu alazão e voltar à casa. De lembranças à comadre Maria e 

lance 
a bênção a meu afilhado Gazuza. Se encontrar outra vez o Cabeleira, de-lhe um abraço por mim, 


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um beliscão e uma boquinha.

- Eu, se tivesse ainda o meu alazão, juro-lhe que havia de desencavar o Cabeleira, ou com a 

vida 
ou com a morte.

- E que fim levou o seu quartau ?

- Espaduou de muito andar. Parece que desde a hora em que o maldito demo o tirou do meu 
quintal não soube mais o que era comer nem beber, e andou num cortado.

- Se você quer servir-se do meu cavalo castanho, ele nos está ali ouvindo. Desta vez estou 
falando sério.

- Onde está ele ?

- No sítio do Felisberto, aonde o mandei com um costal de mandióca.

- Pois aceito, meu compadre, a sua proposta. Hei de mostrar-lhe que o que digo, digo. Se eu não 
descobrir neste matão, ou por estas beiradas de rio o Cabeleira, hei de saber notícias dele seja 
onde for. Também de uma coisa tenha você certeza: quando ouvir sua mulher dizer: "Aí vem o 
compadre Marcolino no cavalo castanho", fique logo sabendo que, se eu não deixei o Cabeleira 
na embira, o deixei no buraco.

Os dois matutos achavam-se na margem esquerda do Capibaribe.

Na margem oposta levantava-se, entre umas laranjeiras e uns oitizeiros, uma casa de bom 

parecer. 
Era a casa de Felisberto.

Eles atravessaram a vau o rio, e foram ter à graciosa habitação, que no meio daquele deserto 
atestava a existência de uma civilização rudimentar no lugar onde havia caído, sem tentativa de 
proveito para a sociedade que o sucedera, o gentilismo guarani digno de melhor sorte.

Do alto onde fora construída a habitação via-se o rio que corria na distancia de umas dezenas 

de 
braças, e desaparecia por entre umas lajes brancas no rumo de leste; do lado do ocidente 
mostravam-se as lavouras de Felisberto desde as proximidades da casa até onde a vista 

alcançava.

Felisberto aplicava-se quase exclusivamente à cultura da roça. No perímetro de vinte léguas em 
derredor era o lavrador que desmanchava mais mandioca no fabrico da farinha, que era de tão 
boa qualidade que competia no mercado do Recife com a farinha de Moribeca, já então afamada. 
Havia anos em que ele mandava para o Recife cerca de duzentos alqueires.

Um negro, uma negra, duas negrotas e três molecotes filhos dos dois primeiros faziam 

prodígios 
de valor na cultura das terras. Amanheciam no cabo da enxada e só se recolhiam quando faltava 
uma braça para o sol se esconder no horizonte. Estes escravos viviam porém felizes tanto 

quanto é 
possível viver feliz na escravidão. Não lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem, e 

nos 
domingos trabalhavam nos seus roçados. Em algum dia grande faziam seu batuque, ao qual 
concorriam os negros das vizinhanças.

Quando o Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre de açúcar do engenho 
Curcuranas, teve a feliz idéia de ir estabelecer-se naquele sítio que comprara com algumas 


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economias que lhe legara um tio que vivera de arrematar dízimos de gado. Essas economias 
deram-lhe também para comprar duas moradinhas de casas e o negro André. Com a negra 

Maria, 
que a mulher lhe trouxera em dote, casou Felisberto o seu negro, na esperança de que em 

poucos 
anos a família escrava estaria aumentada, e por conseguinte aumentada também a fortuna do 
casal. Essa esperança foi brilhantemente confirmada.

Felisberto não estava em casa à chegada dos dois matutos. Havia ido à vila a negócio e 

ninguém 
sabia quando ele estaria de volta.

Eles tiraram para a casa de farinha, que ficava a um lado da casa de morada, e apresentava 

nesse 
momento um aspecto que não era o usual.

Estava-se fazendo farinha para ser a toda pressa mandada ao Recife, onde a grande falta que 
havia deste gênero assegurava pingue lucro ao vendedor.

Frutos do trabalho honesto e esforçado, o qual é sempre favorecido pela Providencia, não 

tinham 
sido de todo destruídos pela grande seca os roçados do Felisberto. Ele já enumerava muitos 
prejuízos, mas olhando em torno de si via ainda muito com que contar na tremenda crise que 
reduzira o geral da população da província a extrema penúria.

Era quase noite, e ainda chegavam animais com caçuás cheios de mandiocas que eram 

despejados 
nas tulhas já formadas destas raízes.

Mulheres sentadas pelo chão ou em cepos, ao pé dessas tulhas, tiravam as mandiocas uma a 

uma, 
e as iam raspando a quicé, e, atirando depois dentro de cestos que eram conduzidos para junto 
das rodas a fim de serem elas passadas pelos ralos que circulam estas.

A casa de farinha não era mais do que um vasto alpendre aberto por todos os lados e coberto de 
palhas de pindoba.

No centro via-se o forno onde tinha de ser cozida a massa já apertada pela prensa e livre da 
manipueira. Parte dela porém, tanto que saía do pé das rodas, era lavada em gamelas e 

alguidares 
onde deixava o resíduo ou goma para os beijus e tapiocas.

A prensa estava armada a um dos lados do alpendre; no outro viam-se as duas rodas que não 
cessavam de girar. Quando cansavam os matutos ou escravos que as moviam eram logo 
substituídos por gente fresca.

Os dois matutos ali bem conhecidos, foram saudados pelas pessoas que estavam trabalhando, 

e, 
como é costume em tais ocasiões ainda hoje, trataram eles de concorrer gratuitamente com o 
auxílio dos seus braços descansados, o que a muitos não deixou de ser agradável.

- Venha para cá, seu Marcolino. Pegue no veio da roda, e desmanche-me esta mandioca que 
está custosa de acabar - disse um.

- E eu ponho de boa vontade em sua mão, Marciano, este rodo. Não precisa mexer muito a 
massa: o forno não está muito quente e não há risco de queimar-se a farinha - disse outro.

- Prepara os beijus Mariquinhas - disse o Marciano a uma rapariguinha morena e cacheada que, 
com as mangas arregaçadas, lavava em um alguidar uma porção de massa.


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Mariquinhas sorriu e continuou no seu trabalho que lhe absorvia toda a atenção.

Pouco depois chegaram dois cunhados de Felisberto, que tinham feito parte do regimento 

volante 
da freguesia.

- Então que fizeram ? - perguntaram muitos a uma voz logo que os viram entrar.

- Nada. Vocês pensam que pegar o Cabeleira é o mesmo que raspar mandioca, ou comer farinha 
mole ?

- Não o viram nem com os olhos, seu Quinquim ?

- Qual, senhor ! Cabeleira de minha vida !

- Encontramos muita onça, e muita cascavel, mas do Cabeleira nem novas nem mandado. Há 
quem diga que ele a esta hora já está nos sertões dos Cairiris.

- Qual Cairiris, senhor ! Amanhã hei de dar com esse dunga - disse o Marcolino.

- O compadre Marcolino jura que o viu hoje junto das cachoeiras do rio - acrescentou o 
Marciano.

- Mas não nos mostrou o cabra durante todo o dia - respondeu Agostinho.

- Está bem, senhores, não falemos mais nisso. Os senhores estão desfazendo agora no meu 
dizer, talvez amanhã a coisa já seja outra. Eu sou um pé-rapado, é certo, mas muito verdadeiro.

- Ninguém duvida de sua palavra, Marcolino.

Um negro que estava metendo lenha no forno virou-se então para o matuto, e, de improviso, lhe 
dirigiu este verso:

Vosmecê, seu Marcolino, 
Vai atrás do Cabeleira ? 
Se quiser pegar o cabra, 
Monte na basta louceira.

Ainda bem não tinha terminado o seu repente, quando um caboclo que, a um canto do alpendre 
estava lavando em um cocho uma porção de mandioca, se saiu com esta resposta: 

Monte na besta fouveira, 
Ou no cavalo cardão, 
     Não há de pegar o cabra 
 No meio desse mundão.

Reinou então silêncio no alpendre para só se ouvirem os dois repentistas. Estava travado um 
desses desafios que são tão comuns nos sertões do Norte, e, muitas vezes, pela facilidade das 
rimas e originalidade dos conceitos, chegaram a oferecer versos que podem figurar entre os 

mais 
primorosos monumentos da literatura natal. O negro replicou:


[Linha 4800 de 5692 - Parte 4 de 4]



Se você gosta do bicho 
        Porque rouba, e mata gente,  
       Veja que alguém não lhe tire 
 As orelhas pra presente.

O caboclo respondeu:

Mete, negro, a tua lenha 
No teu forno, caladinho; 
            Mas não te metas com o homem;  
Podes ficar sem focinho.
O negro:

Eu que sou negro nas cores 
Mas não negro nas ações, 
Se fosse atrás do malvado, 
Cortava-lhe os esporões.

O caboclo:

Para o negro que se mete 
Onde não lhe dão entrada 
Não tem faca o Cabeleira,
 Tem uma peia ensebada.

O negro:

Eu respeito a meus senhores
E senhoras que aqui estão; 
Mas porém não levo em conta 
Quem não teve criação.

O caboclo:

Caboclo do pé da serra,
Criado à beira do rio,
Eu sempre tratei com gente, 
Porque sustento o meu brio.

O desafio, tão bem encaminhado, foi interrompido pela chegada de um cavaleiro. Era o 
Felisberto que voltava da vila.

A lida na casa de farinha continuou não obstante até alta noite, entre risos e cantigas.

O luar inundava o vasto pátio do sítio, e ia pratear as margens e águas do Capibaribe.

Viração intermitente agitava as folhas das macaibeiras e dendezeiros que se levantavam pela 
extrema das terras de Felisberto.



[Linha 4850 de 5692 - Parte 4 de 4]


Cortava os ares o suave murmúrio das águas casado com o canto monótono dos curiangos, que 
pulavam pelos caminhos.

Pela madrugada, o Marcolino montou no cavalo castanho, atravessou o rio, e meteu
se no vasto deserto, ainda adormecido. Como quase todos os homens rústicos, era caprichoso, 

entendia que se não cumprisse a sua palavra solenemente empenhada, ficaria sendo o ludíbrio 

de 
todos os que o conheciam. Preferia, a este extremo, morrer de fome e sede no mato, ou comido 
das onças, coisa em que, para dizermos, pouco cuidava. Todas suas idéias estavam voltadas 

para 
um centro único: descobrir o Cabeleira. Era este o seu ponto de honra.

Sabendo que o Cabeleira ordinariamente, quando se ausentava das matas de Santo Antão, 
aparecia nas de Pau d'Alho, tomou a direção desta povoação.

Pau d'Alho fazia então parte da freguesia de Iguaraçu, da qual foi desmembrada em 1799 para 
ser elevada a freguesia por proposta do visitador Joaquim Saldanha Marinho, nome que traz 

hoje 
com invejável brilho um dos maiores espíritos que conta o Brasil moderno. Passou a vila por 
alvará de 27 de julho de 1811, e a comarca pela lei provincial de 5 de maio de 1840.

Marcolino subiu pela margem do Capibaribe, e antes do meio
dia entrou na povoação que fica em terreno plano à beira deste rio. Nada lhe constou a respeito 
do Cabeleira.

Demorou-se o tempo estritamente necessário ao descanso do cavalo, e quando o sol quebrou 
pos-se novamente a caminho para Goitá, que fica quatro léguas distante de Pau d'Alho, e nesse 
tempo era um lugarejo de nenhuma importância, pertencente a Santo Antão.

Há loucuras transitórias que por tal modo revolucionam o espírito do homem, que o tornam 

capaz 
assim de grandes baixezas, como de virtudes ímpares. Feliz aquele que, sob a influencia de 
loucuras semelhantes, põe os seus esforços e sacrifícios ao serviço da humanidade ou de uma 
causa nobre.

Marcolino estava possuído de uma dessas loucuras.

Sem o pensar nem querer, tinha fatalmente arriscado a sua palavra, o seu brio, a sua honra. 

Estava 
apaixonado pelo lance, e era inevitavelmente arrastado a seu destino.

Deixando mulher e filhos, em duelo com a necessidade, vinha, como um cruzado, um peregrino, 
um apóstolo do bem, ou um visionário em busca de um ente que fazia tremer povoações 

inteiras, 
que preocupava o governo, que aparecia como fantasma, e desaparecia como uma sombra.

Este ente tinha à sua disposição o mato para o receber, os ecos para o avisarem da 

aproximação 
dos que o buscavam, os rios para encherem depois de sua passagem, as grutas para o 

esconderem, 
a natureza enfim para o disputar tenazmente aos homens, ao poder público, às leis, à justiça, 

ao 
próprio Deus segundo parecia.

A tardinha Marcolino estava no lugarejo. Debalde perguntou, debalde indagou. Não houve quem 
lhe desse novas do famoso bandido.

Aí pernoitou, mas não dormiu.



[Linha 4900 de 5692 - Parte 4 de 4]


Muito cedo meteu-se nas matas.

A cabo de dois dias, consumidos sem resultado, entrou a cair em si. A razão tinha-se libertado 

da 
alucinação que a prendera em suas redes de aço. A sua doce luz reapareceram os caminhos 

que as 
trevas da paixão tinham encoberto ao olhos da vítima do sonho fatal.

Marcolino caíra em si no meio do deserto, ouvindo o rugir das feras, lutando com a fome.

Desanimado, envergonhado da sua fraqueza, resolveu voltar ao seio da família.

Então a imagem dos filhos e da mulher lhe apareceu na mente. Ele teve saudades da casa e 

quis 
partir à mesma hora; mas conhecendo os perigos a que se expunha se o fizesse, aguardou 

sôfrego 
a madrugada. Quando os horizontes começaram a desmaiar, e o brilho das estrelas a 
embranquecer, Marcolino pos-se a caminho.

Estava inteiramente outro.

A vergonha cobria-lhe o rosto, o medo dominava-lhe o espírito, na consciência doía-lhe o 

remorso 
de haver, sem o menor interesse pessoal, desamparado mulher e filhos nas garras da miséria.

O dono da casa onde ele havia pernoitado dois dias antes, ao qual devia, além desta, outras 
muitas obrigações, dera-lhe uma carta para ser entregue por ele ao senhor do Engenho Novo 

que 
de presente faz parte da freguesia de Pau d'Alho, e pertencia naquele tempo a Goiana.

Quando Marcolino chegou a Pau d'Alho, o cavalo estava cansado da viagem, e do mau passar 
durante ela. Para levar a carta a seu destino, teve o matuto de caminhar a pé. Ele viu nisso uma 
nova tribulação com que a sorte o punia da sua loucura.

Ao anoitecer, de um alto por onde passava o caminho antes de sair da mata que cercava o 
engenho pelo lado do sul, viu ele um homem correr gacheiro e cauteloso pelo aceiro afora, e 
entrar adiante no canavial.

Marcolino por um triz não caiu fulminado de espanto, sobressalto e satisfação ao mesmo tempo.

Tinha reconhecido nesse homem o Cabeleira.

Capítulo XVI  


 A fome obrigara o bandido a deixar o mato, como obriga as aves a emigrarem, e as feras 

cervais 
a deixarem seus covis.

    Havia cinco dias que ele partira de Santo Antão, e três que não comia senão os escassos 
frutos que lhe dava a macaibeira, o ananaseiro bravio, o jatobá do deserto.

    Uma tarde em que a fome e a fadiga o tinham prostrado, viu dentre umas touceiras de 
taquara onde se recolhera para cobrar animo, um cavaleiro que, havendo atravessado o rio, de 
força tinha de passar a poucos passos dele, em um cotovelo formado pela picada.

    O cavaleiro era um velho e parecia-se mais com uma múmia do que com um ente vivo.


[Linha 4950 de 5692 - Parte 4 de 4]



    Tinha a pele grudada nos ossos, e seu corpo apresentava ângulos e retas de dureza 

escultural.

    O cavalo não tinha melhor parecer do que seu senhor. Era uma armação óssea informe, 
pesada, cadavérica e triste.

    Trazia o velho tão caída a cabeça para diante, que quase chegava com o queixo recurvado ao 
cabeçote da cangalha. O cavalo, parecendo ceder à mesma lei que o cavaleiro, por vezes varria 
com os beiços coriáceos o pó do caminho. Essa lei era a lei da fome.

    "Este velho", pensou o Cabeleira, "traz pelo menos farinha nos caçuás. Vou tomar-lhe para 
mim, e se ele não quiser entregar-me a sua carga, corto-lhe a garganta."

    Empunhou o pedaço da faca, única arma que lhe restava do terrível cangaço de outrora, e 
quando o velho confrontou com ele, saltou-lhe ao cabresto do cavalo. Este parou de muito boa 
vontade, enquanto seu dono, sem se mostrar aterrado nem sobressaltado, disse ao bandido:

    - Guarde-o Deus, meu senhor - saudação que até bem pouco tempo se ouvia no sertão.

    Quando estava para fazer a terrível intimação, sentiu o Cabeleira faltar-lhe força para suster o 
cabresto, tromeram-lhe as pernas, vacilaram-lhe os pés. Seus olhos tinham dado com a imagem 

de 
Luísa, de joelhos na beira do caminho com as mãos postas, os olhos suplicantes, tristes e 
chorosos, voltados para ele. Pareceu-lhe até ouvir as seguintes palavras:

- Não o mates, Cabeleira.

    Esta ilusão era efeito da sobreexcitação nervosa, produzida em todo o seu organismo pela 
falta de alimentos, pela dor moral que lhe causara o transito da moça, ou talvez pela profunda 
revolução que antes de ter ela falecido havia obrado nos seus instintos, idéias, e hábitos, o 
sentimento destinado a redimi-lo do erro, e do crime - o amor.
    
    Foi tão profundo e violento o abalo que experimentou ao ver aquela doce efígie (a qual ele 
julgava ter desaparecido para sempre de seus olhos ), que irresistivelmente lhe escaparam dos 
lábios estas palavras:

- Não o matarei, meu amor; não o matarei.
    Mas não foram somente as palavras que lhe escaparam violentamente dos lábios; dos olhos 
lhe saltaram também lágrimas espontâneas, que ele não pôde reprimir.

    E como para dar plena satisfação àquela doce imagem que se atravessava diante dele no 
momento em que um crime estava a ser cometido por sua mão, Cabeleira atirou dentro de uma 
grota que ficava do outro lado da picada o resto da arma de que estivera pendente a vida do 
pobre velho.

    Este, acordando novamente do profundo abatimento que pesava sobre todos os seus 
membros, dirigiu outra vez a palavra ao bandido:

- Camarada, estou pronto para servi-lo.

    - Há três dias que não boto na minha boca um punhado de farinha - disse José. - Traz 


[Linha 5000 de 5692 - Parte 4 de 4]


você aí alguma coisa que me queira dar para comer ?

    - É seguramente meio-dia, meu senhor -m disse o velho erguendo a custo os olhos ao sol 
para se certificar da hora. - Amanhã pela manhã faz quatro dias que este corpo velho, que o 
senhor está vendo, não sabe o que é comer. Dou a Deus por testemunha da minha verdade.

    - E que é que traz dentro destes caçuás ? - perguntou-lhe o Cabeleira.

    - Pode ver o que trago. Nada. Tinha uma filha solteira, outra viúva e três netinhos. Veio a 
peste e levou-me as duas filhas em menos de oito dias. Não tendo recurso nenhum para acudir 

às 
minhas necessidades, saí a pedir. Fui à casa de meu compadre, que mora na Ladeira Grande; o 
compadre tinha morrido das bexigas, e a mulher estava para entregar a alma a Deus; o gadinho 
que possuía desaparecera com a seca; alguma criação que ficara no terreiro tinha sido comida 
pelos magotes de gente, que vêm aí em retirada, caindo aqui, morrendo acolá de fome, só de 
fome. Achei no pátio da propriedade este cavalo velho, que me vai arrastando até a casa. Sabe 
Deus se lá chegarei, ou se não ficarei no caminho, sem ter visto meus pobres netos ainda uma 

vez 
antes de morrer.

    - Está bom, meu velho; vá seguindo seu caminho. Você é mais necessitado do que eu.

- Não da graça de Deus, senhor -  disse o velho.

O Cabeleira entrou de novo no tabocal.

    O abalo que a visão lhe causara, o espetáculo de miséria que lhe descrevera o velho, miséria 
muito maior do que a sua, deram-lhe forças para prosseguir na peregrinação.

    No dia seguinte entrava ele nas matas de Goitá, seu mundo virgem, em cujo seio, talvez pela 
razão de lhe consagrar entranhável afeto, se considerava o mais seguro e feliz dos mortais.

Deitou-se e dormiu.
    
    Quando acordou sentiu que consigo havia acordado, mais devoradora e cruel, a fome que o 
tinha prostrado por terra na véspera.

    Depois de ter levado quase todo o dia em vão à caça de algum fruto silvestre, deu com a 
vista, no meio de uma aberta que fazia a mata, sobre os estendidos canaviais do Engenho 

Novo.
    Da lomba, onde havia parado, desceu rapidamente à orla da floresta.

Era quase noite.

    Alongou os olhos pelas imensas quebradas onde a cana acamava, e só viu um mundo de 
verdura que lhe acenava com doces presentes.

    Ah! ele podia passar meses dentro desse mundo, sem que o vissem, e sem risco de ser 
devorado por animais ferozes. Era uma região amiga a que se lhe abria diante dos olhos.

    A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da fortuna e riqueza de um 
vasto império; essa planta abençoada que dali punha à sua disposição nutritivo e precioso suco 
oferecia-lhe também proteção à sombra da sua basta folhagem. Podia ele, pobre foragido, 

refazer 


[Linha 5050 de 5692 - Parte 4 de 4]


as forças no seio dessa solidão generosa que lhe daria a sorver licor suavíssimo, como o que 

mana 
de um seio maternal.

    Cabeleira, rápido como um jaguar, pos a cabeça de fora do mato, olhou, observou, e, nada 
vendo, atravessou o aceiro e penetrou no canavial.

    Achando-se já dentro, voltou-se e observou de novo. Não viu viva alma. Do outro lado do 
aceiro estava a floresta virgem, donde ele havia saído. As sombras do lusco-fusco cobriam as 
montanhas, as quebradas, os vales, todo o retiro enfim. Em torno dele, e além das folhagens, 

além 
das planuras até onde pode chegar com a vista e com as ouças, só viu a solidão profunda, só 
ouviu o silêncio absoluto da natureza.

Ia adiantada a noite quando ele terminou sua refeição.

    A lua discorria suavemente, entre castelos de nuvens, na vasta campina celeste, e a viração 
ciciava brandamente no canavial onde deixava as fragrâncias que, como abelha da noite, trazia 

do 
pau-d'arco da mata próxima em suas asas sutis.

    Cabeleira pôs nos ombros as últimas das canas que quebrara e tomou a aberta por onde 

havia 
entrado. Mas foi logo obrigado a voltar sobre seus passos para não ser visto por dois negros do 
engenho que estavam defronte da abertura da camarinha.

    O canavial não tinha somente esta saída. Mas qualquer delas para onde encaminhou seus 
passos se lhe mostrou tornada por escravos do engenho.

    O Cabeleira achava-se tão longe de pensar que o guardavam, que acreditou, para explicar o 
que seus olhos descobriram, que os negros faziam quinguingu ao luar como de costume.
    Deitou-se, e o sono que dormiu foi profundo e reparador. Se tivessem penetrado no lugar 
onde ele adormecera tê-lo-iam prendido sem dificuldade, como se fora uma criança.

Raiou enfim o dia com seu cortejo de luz e movimento.
    
    O sol despertou o bandido com um raio que lhe enviou por entre a folhagem. Não para sair, 
mas unicamente para observar, o Cabeleira aproximou-se, sem fazer ruído, da primeira abertura 
que se lhe oferecera. O que então viu deu-lhe idéia da triste realidade que ele estava longe de 
suspeitar, mas que o abraçava como um círculo de ferro. Não estavam guardadas as saídas por 
negros como durante a noite, mas por sentinelas militares. Cedo seus olhos reconheceram que 
uma linha compacta de soldados cercava todo o canavial, donde não poderia sair um rato contra 

vontade deles.
    Oh ! como apareceu carregada aos olhos do infeliz mancebo aquela doce natureza, onde 
acreditara que poderia estar ao abrigo da perseguição dos homens, e da fatalidade da sorte !

    "Estou perdido para sempre", pensou ele. "Cercado por todos os lados, sem companheiros 
que me auxiliem na evasão, sem uma arma com que possa abrir passagem entre os que me 

cercam, 
não poderei salvar-me."

Seu espírito caiu em profunda meditação.

    O canavial estava literalmente sitiado. No mesmo instante em que soube, por boca de 
Marcolino, que o Cabeleira tinha passado do mato ao canavial, o senhor do Engenho Novo 


[Linha 5100 de 5692 - Parte 4 de 4]


reunira a fábrica passante de trezentos negros e os mandara pôr se de guarda ao bandido.

    Sem perda de tempo expedira o próprio Marcolino com uma carta participando o fato ao 
capitão-mor que se achava já então no seu engenho Petribu, e pedindo-lhe prontas 

providências.

    Uma companhia completa de milicianos achava-se ainda de ordens ao capitão-mor que tinha 
em mente dar novo varejo nos matos, por ocasião de sua volta a Goiana. Essa companhia 

partira 
incontinenti, tendo à sua frente Cristóvão de Holanda, para o lugar onde se tinha de verificar a 
importante diligência. Ordens terminantes foram expedidas durante a noite aos coronéis de 
ordenanças que se achavam mais próximos, a fim de que antes do amanhecer se achassem 

com 
fortes partidas no lugar indicado.

    Um inimigo poderoso que houvesse batido às portas da freguesia não teria motivado o 
movimento de tropas que se verificara nas doze horas daquela noite com prontidão que faz 

honra 
à disciplina militar daqueles tempos.

    Pela manhã as paragens contíguas ao ponto assediado figuravam um pequeno campo de 
batalha. Cerca de duzentas praças achavam-se ali reunidas, por que o assédio fosse 

sustentado 
com todo o rigor militar.

    Ao cair da tarde um oficial ofereceu-se para penetrar no canavial com doze homens de sua 
escolha, assegurando que o bandido não viria a contar vitória.

    Cristóvão de Holanda, tendo ouvido os seus coronéis sobre a proposta do destemido oficial, 
considerou-a inconveniente por dar ocasião à luta pessoal, da qual poderia resultar a morte do 
bandido.

    Não havendo, para conseguir-se a rendição deste, outro meio que o assédio, foi este 

resolvido 
por unanimidade.

    O Cabeleira tentou mais de uma vez iludir a vigilância das guardas durante a noite, mas em 
vão. Antes de escurecer essas guardas eram reforçadas, e a vigilância dobrava na proporção 

das 
facilidades que naturalmente a noite oferece para a evasão.

    Passaram-se dois dias sem resultado. Ninguém, durante esse espaço de tempo, havia visto o 
prisioneiro. Começou-se a desconfiar de sua existência dentro do canavial.

    Marcolino foi interrogado pela segunda vez, e declarou que tinha visto o bandido entrar ali, 
só e sem armas.
    Esta última declaração veio aumentar a desconfiança geral. Não se pôde, com razão, explicar 
que o famoso assassino se houvesse despojado, para penetrar ali, de suas armas no momento 

em 
que mais se expunha à ação da justiça.

    Marcolino, à vista destas considerações, às quais nada teve que opor, começou a descrer de 

si 
mesmo e a acreditar que seus olhos o tinham enganado. O desanimo, a tristeza, a vergonha, 

que já 
o haviam deixado, volveram a abatê-lo novamente.

    Cristóvão de Holanda excogitava já um meio de sair com honra da situação em que se via, 
quando lhe lembrou mandar arrasar o canavial.



[Linha 5150 de 5692 - Parte 4 de 4]


    Toda a fábrica foi chamada incontinenti ao lugar onde as foices afiadas tinham de abater em 
poucas horas a ridente floresta que durante quase três dias servira de pitoresca muralha ao 
Cabeleira.

    Ele ouviu do centro da espessura onde estava, com o sangue-frio que é natural aos homens 
afeitos aos perigos, o rumor, ao princípio afastado, depois mais próximo, da queda dessas 
touceira abençoadas a que devia o franco asilo que nunca encontrara entre os seus 

semelhantes.

    O círculo foi-se estreitando gradualmente em torno do prisioneiro, com a rapidez de um 
incêndio que ao mesmo tempo avança da circunferência ao centro.

    A proporção que as camadas iam caindo aos golpes dos possantes segadores, eram logo 
retiradas a fim de que se tivesse sempre desobstruída a passagem, e fácil fosse o acesso ao 

ponto 
objetivo.

    As linhas militares, que mantinham o assédio, acompanhando o descrescimento do espaço 
que desaparecia aos olhos dos circunstantes, tornavam-se gradualmente compactas, fortes, 
impossíveis de romper.
    A princípio acreditou-se, não obstante o que dissera o Marcolino, que o Cabeleira não estava 
desacompanhado.

    A cada momento esperava-se ouvir a detonação de uma descarga de dentro contra a força 
que cercava o ponto. Quem não se considerou exposto ao punhal, à bala, à morte julgando ter 
através de frágeis plantas, um inimigo, se não uma companhia de inimigos amestrados na 

prática 
de todos os crimes ?

    Chegou enfim o momento dos negros descarregarem suas cortantes foices sobre o último 
renque de touças - aquele que separava do campo arrasado a vasta camarinha em que se 
acoutara o bandido.

    Desapareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circunstantes; as duas superfícies - a 
exterior e a interior - uniram-se como por encanto; o Cabeleira surgiu dentre as folhas com que 
pouco antes brincava a brisa, agora confundidas com as palhas secas, imagem, como aquelas, 

do 
seu perdido poder.

    Serena e resignada tristeza cobria-lhe o rosto queimado pelo sol que naquele momento lhe 
beijava a face onde haviam deixado indícios das suas garras a dor moral e a fome. Caía-lhe 

sobre 
os ombros a basta onda de cabelos, cacheados ao longe, e mais negros do que a barba 

escassa e 
nova que atestava a sua pouca idade. Seu trajo era simples: véstia de couro surrado, camisa e 
calça que deixavam ver, através dos rasgões, o corpo de cor branca. O Cabeleira estava 

descalço, 
e tinha a cabeça coberta por um chapéu de palha de pindoba.

    Quando se achou de súbito em, presença da multidão, levou instintamente a mão ao chapéu, 
e descobriu-se.

    Os mais animosos que haviam corrido a pôr-lhe as mãos para segurá-lo, tomando o gesto 
respeitoso que bem denotava o bom natural do bandido, por uma ameaça, ou meneio de 

agressão, 
recuaram amedrontados.

    Cristóvão de Holanda Cavalcanti, sustentando os foros de uma estirpe que já se havia 


[Linha 5200 de 5692 - Parte 4 de 4]


ilustrado em 1710, e que no Brasil independente -estava destinada a figurar com o brilho que 
sabemos, aproximou-se do bandido e com o ar e jeito grave que lhe davam a nobreza e a 
autoridade que revestia:

- É você o Cabeleira ? - perguntou ele ao mancebo.

    - Saberá V. Sª que sou eu José Gomes - respondeu ele sem hesitar nem subterfugir.

    Uma centena de vozes confirmou esta resposta franca, completa, e própria do seu grande 
ânimo.

    - José Gomes - disse-lhe Cristóvão pondo a mão direita no ombro do mancebo - , você 
pelos enormes crimes que tem cometido, está preso em nome da lei, e vai responder perante a 
junta de justiça.

    Então, em conformidade da ordem dada por ele, um toque de corneta, que atroou a solidão, 
anunciou que o criminoso tinha caído nas mãos dos agentes da força pública.

    - Gonçalo Pais - disse Cristóvão voltando-se para o seu ajudante - , mande soltar o 
matuto, que denunciou o criminoso. Se este não fosse encontrado dentro do cerco, o 

denunciante 
pagaria com três tratos de polé a humilhação a que me houvesse exposto perante o governador. 
Como se verificou a sua declaração, será recompensado pelo régio erário, e recomendado à 
munificência del-rei nosso senhor.

Meia hora depois, Marcolino, montado em fogoso cavalo baio, desapareceu com ar e jeito de 
quem alcançou grande vitória, no caminho de Santo Antão, a levar a notícia de uma prisão que 
salvara a sua honra, e com que ele se considerava coberto de glória.

Capítulo XVII

Grande concurso de povo tomava uma tarde uma das embocaduras da rua do Amparo da ilustre 
vila de Goiana.

    Depois de algum tempo chegaram de longe, do lado do Barro Vermelho, ao ponto da reunião 
os sons de um clarim, que logo cessaram para deixarem ouvir os rufos de um tambor.

    A este sinal, sofregamente esperado, alvoroçou-se a multidão. As mulheres compuseram 

seus 
lenços no pescoço, os lençóis na cabeça, os cabeções de rendas, então muito em uso. As mães 
conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham pela mão; os pais foram ocupar seu posto, 
que não mais desampararam, ao pé das consortes e filhas, que se mostravam temerosas do 

que 
poderia vir a acontecer, porque, em muitos dos circunstantes, à curiosidade se substituiu logo o 
terror pânico, difícil de vencer, e sempre contagioso e pegadiço.

A rua do Amparo contava então uma só casa de sobrado.

    Via-se na varanda deste d. Leonor, mulher do capitão-mor. Seus belos olhos estavam 
voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão e burburinho. Entre os anéis dos seus 
negros cabelos brilhavam ricas flores de ouro e coral, semelhantes a malmequeres e pitangas. 

Um 
vestido de seda azul, com ramos de rosas brancas que lhe subiam da fímbria à cintura, deixava 
adivinhar as formas admiravelmente corretas da nobre senhora, cuja gentileza impunha a todos 


[Linha 5250 de 5692 - Parte 4 de 4]


preito com que se não daria mal uma princesa. A seu lado, mostravam-se outras senhoras 
pertencentes às primeiras famílias da vila.

    De repente ouviu-se de novo o clarim, a quem coube a distinção de anunciar a entrada da 
tropa com o grande prisioneiro.

    A soldadesca rompeu por entre a multidão, e encaminhou-se à casa do capitão-mor.

    Este vinha à frente do batalhão, e montava sua cavalgadura de estimação ricamente 

ajaezada. 
Ao lado do capitão-mor mostravam-se alguns coronéis de ordenanças.

    O prisioneiro aparecia no centro da tropa. Sua fisionomia estava triste; mas não tinha a 
carregada expressão da perversidade, nem o vil abatimento da covardia. Seu passo, posto que 
forcado, era firme, qual devera ser o de um homem de poderosa organização, aos 24 para 25 

anos 
de idade.

    Faltava porém a esse homem a prontidão nos movimentos físicos a que por inúmeras vezes 
devera sua salvação. Uma corda de couro cru prendia-lhe em diferentes anéis os braços, 

poucos 
dias antes prestes a levar a destruição e a morte a afastadas regiões.

    Poucos foram os que não tiveram os olhos arrasados de lágrimas quando viram escravo de 
uma cadeia ignóbil o infeliz moço, que, ainda ontem, tinha a imensidão a seu dispor, e era livre 
como as feras no deserto. A presença do infeliz despertara a piedade de quase todos os 
espectadores.

    Naquele tempo a cadeia de Goiana não tinha a solidez da que se vê presentemente na rua 
Direita. Era uma casa de um só pavimento a que faltavam quase todas as condições de 

segurança 
e higiene que as penitenciárias modernas reúnem.
    Viam-se em suas janelas não grades, mas varões de madeira. Muitos criminosos 

conseguiram 
evadir-se quebrando alguns desses varões. Nem é de admirar que tais fossem as condições da 
cadeia pública daquela vila em 1776, se ainda hoje, com exceção das capitais e de algumas 
cidades interiores de mais nota, se apontam localidades importantes e até sedes de comarcas 

que 
não têm melhores prisões que as do tempo colonial.

    Não só pela manifesta incapacidade da prisão pública, mas também por não confiar de 
ninguém a guarda de um réu dos quilates do Cabeleira resolveu Cristóvão de Holanda tê-lo em 
sua própria casa durante o tempo que fosse necessário para os preparativos da jornada ao 

Recife.

    As primeiras autoridades de Goiana reuniram-se à noite em casado capitão-mor, que a tuba 
da fama começou a apregoar como o salvador da província.

    Enquanto essas autoridades praticavam da questão do dia - a prisão do malfeitor, este, no 
pavimento inferior, de que uma parte lhe fora dada por menagem, entregava-se a fundas 
cogitações.

    Um soldado, que dele se compadecera, o tinha persuadido a ir passar alguns momentos no 
quintal, a fim de se divertir de suas idéias tristes. O Cabeleira sentara-se a um canto, à sombra 

de 
uma cajazeira.

    Em qualquer parte para onde volveu os olhos só lhe apareceram guardas que não perdiam 

um 


[Linha 5300 de 5692 - Parte 4 de 4]


só dos seus movimentos. Ergueu os olhos acima dos altos muros que o cercavam, e deu com a 
vista nas belas estrelas que tinham sido suas companheiras no deserto. Aqueles astros 

saudosos, 
guias leais e constantes do filho da liberdade, não alumiavam agora nesse filho senão o 

escravo 
da justiça que qualquer criança poderia impunemente insultar.

    Lembrou-se de Luísa, cujo cadáver não lhe havia permitido dar à sepultura o instinto da 
própria conservação; o medo irresistível da morte o impelira para o seio da floresta antes que 

ele 
houvesse cumprido este piedoso dever.

    - Ah ! Luisinha ! - pensou ele. - Se eu tinha de cair alguns dias depois no poder da 
justiça, por que fugi então sem ter primeiro posto teu corpo ao abrigo dos urubus, ou dos cães 

de 
caça ? Ah ! meu amor, perdoa minha crueldade, perdoa minha ingratidão.

    As lágrimas saltaram-lhe dos olhos em impetuosa torrente.

    - De que choras, Cabeleira ? - perguntou-lhe o soldado que dele se mostrara compassivo. 
-Estás com medo da morte ?

    - Não, não tenho medo de morrer - disse ele. - Estou chorando de me haver lembrado da 
única mulher, a quem, depois de minha mãe, quis bem nesta vida.

    - Qual mulher? Será a que deixaste morta junto das cabeceiras do rio ?

- Essa mesma. Você a viu ?

    - Sim, eu a vi. Mas que bem poderias querer a ela, se foste tu próprio, Cabeleira, que a 
mataste ?

    - Não, eu não a matei; ela morreu, ela mesma, quando se considerava feliz comigo, e 
quando eu via nela meu maior prazer, minha maior dita. Ah, Luisinha, tu bem sabes que eu te 
queria muito bem, muito ! Que pena tenho eu quando considero que te perdi para sempre, que te 
deixei no deserto, que os carcarás furaram teus olhos, que os urubus despedaçaram tuas 

carnes, e 
que os anus, pretos como meu coração, esvoaçaram por cima de teus ossos !

Os soluços embargaram a voz do desgraçado.

    - Se é por isso, não chores, Cabeleira. O corpo de Luisinha não ficou às aves nem aos 
animais do mato.

- Não ficou ?

- Eu o enterrei com minhas próprias mãos.

- Você ?

- Eu e mais outro companheiro.

    O bandido correu ao soldado para o apertar em seus braços em sinal de reconhecimento. Mas 
a corda que o prendia pelos lagartos tolheu que ele lhe desse esta demonstração.



[Linha 5350 de 5692 - Parte 4 de 4]


    - Não tem que me agradecer - disse o miliciano. - Eu vi Luisinha menina. Você não me 
conhece, mas eu também o vi pequeno; e se sua prisão estivesse em minhas mãos, nunca ela 

se 
teria feito.

    O soldado afastou-se do Cabeleira para que este não lhe visse as lágrimas que de quatro em 
quatro estavam banhando suas faces.

    - Não se afaste, camarada - disse o prisioneiro. - Tenho certeza de que você não me quer 
mal, e por isso quero pedir-lhe um favor. Não sei como poderei passar esta noite com a tristeza 
que tenho. Poderá você arranjar-me uma viola ?

    Pouco depois ignotos sons, que estão acima do maior elogio, levaram melancolia e saudade 
ao coração de todo aquele de quem se fizeram ouvir.

    Fora já servida a última refeição, e os hóspedes se haviam retirado a suas casas. Era tudo 
mudez na rua e vizinhanças. Os sons melífluos que já haviam imposto silencio aos soldados 
chegaram ao terrado da casa de Cristóvão como uma torrente de celestiais melodias, que 
lembraram a harpa de Davi, ou a lira de Anfião. Estas melodias comoveram o capitão-mor e sua 
jovem senhora, que iam ficar dentro em algumas horas separados de novo.

    - Como são tristes os sons desta viola ! - disse ele. - São as últimas despedidas de quem 
está a entrar no reino da verdade.
    
    - Mais me entristecem estas palavras suas, Cristóvão - disse dona Leonor. - Se nós o 
pudéssemos salvar...

    - Que diz, Leonor? Ele é um grande assassino. Sua mão tem derramado rios de sangue 
inocente. Os monstros não tem entranhas mais cruas do que as dele.

    - Pobre moço! Para atestar que seu coração não é tão mau, nem sequer lhe vale a expressão 
de bondade que tem no rosto ! Escute, Cristóvão. Conversávamos aqui há pouco eu e dona 
Catarina; Gonçalo Pais estava ao nosso lado. Senão quando vieram trazer-nos delícias e 

despertar 
em nós saudades comoventes os sons que o prisioneiro extrai com rara delicadeza de seu 
inspirado instrumento. Dona Catarina manifestou então grandes desejos de o conhecer.

- E que fizeram ?

    - Descemos ao quintal acompanhadas de Gonçalo. Assim que nos viu, ele levantou-se, e nos 
saudou respeitosamente. "Continue a tocar, Cabeleira", disse-lhe eu. "Ah, senhora, mal posso 
pegar na viola. Além disso eu não sei tocar coisa capaz, senhora minha. Mas estes sons 

grosseiros 
podem melhorar se vossa senhoria, por sua bondade, mandar que me afrouxem um pouco estes 
laços. A corda penetrou-me na raiz das carnes, e tira-me toda a ação." Fiz sinal a Gonçalo para 
que satisfizesse o pedido do prisioneiro, mas Gonçalo hesitou.

- Fez bem - disse o capitão-mor.

    - "Pode fazer sem susto o que minha senhora manda, sr. tenente. Cabeleira não fugirá 
porque está cansado de viver", disse o prisioneiro. Faltam-me expressões para lhe dizer, 
Cristóvão, o que ouvimos então. Notas de órgão inspirado não dizem os mistérios, as 

melancolias 
que se debulharam da viola do desgraçado. Vendo-o tão moço, tão artista e tão infeliz,todos nos 


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sentimos comovidos da sua sorte; e ele, o prisioneiro, chorava e soluçava como uma criança.

    - Basta, Leonor - disse Cristóvão abalado com a narração que acabava de ouvir.

    Dona Leonor, surpreendendo este sentimento do marido, propôs-se tirar dele o maior 
proveito para o infeliz. Atirou-se a Cristóvão de Holanda, e o cobriu de afagos e carinhos.

    Fez mil rogativas para que se amerceasse da sorte do Cabeleira. A seu entender, alguns 

anos 
de prisão bastariam para que ele se corrigisse e emendasse.

    - Mas quem diz que não será esta a pena que se lhe vai impor ? - perguntou o capitão-mor.

    - Não o disse já o senhor, Cristóvão? Sou eu que lhe peço que de escapula ao infeliz.

    - Escapula, Leonor, escápula ! - exclamou Cristavão. E minha honra, e meu dever?

    - Eles não ficarão manchados com um ato de humanidade. Todos dizem que a maus 
conselhos e funestas instigações deve o Cabeleira o ter cometido tantos crimes. Pois bem; 

aquele 
que o aconselhou e instigou à prática desses crimes, o verdadeiro criminoso, lá está para 
responder pelo que fez, e mandou o filho fazer. Sua condenação servirá de exemplo à 

sociedade e 
ao próprio filho dele; mas a condenação deste será uma grande injustiça, e o céu não permitirá 
jamais que para ela concorra Cristóvão Cavalcanti que sempre trouxe limpo o brasão que lhe 
legaram seus avós.

    O capitão-mor levantou-se com a palidez na face. A poderosa dialética da consorte o havia 
feito sentir mais alterações na alma do que seus próprios carinhos no coração. A verdade sobre 

Cabeleira era justamente aquela que sua mulher havia resumido em meia dúzia de palavras 

vivas e 
violentas.

    Depois de ter dado alguns passos pelo terrado Cristóvão caminhou para dona Leonor, que o 
não tinha perdido de vista.

    - Tudo o que disse é verdade, Leonor; mas sou eu acaso juiz ? Não sou mais do que o 
executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi um criminoso, para o qual, se a mim 
competisse julgá-lo, teria eu uma condenação mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora 
não o tenho eu. Se usasse de semelhante faculdade, Cristóvão de Holanda teria lançado sobre 

seu 
nome honrado uma mancha indelével.

     Tendo dito estas palavras, Cristóvão de Holanda recolheu-se imediatamente a seu gabinete 
em companhia de Gonçalo Pais.

     tatuando a lua apareceu no céu triste e pálida como os anjos dos sepulcros, a tropa recebeu 
ordem para partir no mesmo instante. O capitão-mor precipitava a jornada que havia dilatado 

para 
o dia seguinte.

     Pouco depois a tropa moveu-se. Dona Leonor, anjo de amor e de benevolência, deixava cair 
nesse momento, em silencio, algumas lágrimas, límpidas como sua alma.

A respeitável senhora tinha saudades do esposo que novamente se ausentava, e pena do 

infeliz, 
que a morte atraía a si na forma de um patíbulo, e em nome da lei.


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Capítulo XVIII  


Chegou enfim o momento da extrema provação.

    Ainda não tinha decorrido um mês, quando se ouviram os duros sons das crebras marteladas, 
que anunciavam à população do Recife o próximo e fatal fim dos delinqüente. Levantava-se a 
forca no largo das Cinco Pontas.

    Pela segunda vez este instrumento de suplício sobressaltou os ânimos e encheu de dor os 
corações na vila heróica.

    Por grandes que sejam as ofensas que a sociedade tenha recebido de um dos seus 

membros, a 
razão pública sente-se abatida diante da sua punição por meio da morte natural.

    A memória dos primeiros suplícios estava quase de todo apagado do espírito do povo. 
Realizaram-se eles durante a administração do governador Henrique Luís. Haviam decorrido da 
sua realização 38 anos, tempo mais que bastante para que se oblitere da tela do pensamento a 
imagem de semelhantes representações.

    Os pernambucanos lembravam-se porém ainda em 1776 do muito que custara a esse 
governador sentenciar à morte alguns criminosos.

    Uma provisão régia de data de 20 de outubro de 1735 tinha criado em Pernambuco a junta 
de justiça criminal, a mesma que 1776 julgou o Cabeleira, seu pai e os demais réus que 

sabemos.

    Havia-se reunido em conformidade da citada provisão na casa da câmara aquela junta, 
composta do governador, dos ouvidores de Pernambuco e Paraíba, do juiz de fora de Olinda, e 
de um dos ouvidores que tinham servido na primeira das sobreditas províncias. Apesar das 

razões 
mais de humanidade, do que de Estado, expostas por Henrique Luís, a maioria condenara os 
criminosos a serem justiçados no patíbulo. Henrique Luís, o modelo dos governadores 
portugueses, passara pelo desgosto de lavrar a sentença de morte que feriu primeiro a ele que 

aos 
condenados.

    No julgamento do Cabeleira e dos demais presos a inviolabilidade da pessoa humana fora 
melhor compreendida e respeitada pela junta, da qual só um membro opinara pela pena capital.

    Assim, no espaço de 38 anos o nível da consciência moral subira em três dos membros 

dessa 
terrível comissão; mas por desgraça baixara no mais importante deles. José César, 

desprezando o 
voto dessa maioria, digna de figurar nos tribunais modernos, sentenciara à pena última os 
infelizes com o apoio de um voto contra três, excedendo assim as atribuições do governador a 
quem a citada provisão conferia unicamente, no caso de empate entre os quatro membros, o 
direito de desempatar. Por onde se vê que entre estes dois governadores, ambos bem 
intencionados, embora as suas intenções fossem contrárias entre si e em seus efeitos, não 
mediavam somente 58 anos, mas também a barreira que separa das trevas a luz, do poder 
arbitrário, que destrói, o sentimento liberal, que edifica.
    Henrique Luís, posto que mais afastado do que seu colega, representava o direito novo de 
que o mesmo Portugal do século 18 trasladou em seu código, que o honra, uma parcela no 

século 
19 com aplauso de todas as nações cultas. Esta parcela é a que afirma e consagra a 

inviolabilidade 


[Linha 5500 de 5692 - Parte 4 de 4]


da pessoa humana.
    Se alguém houvesse dito então a José César que sua pátria em menos de um século riscaria 

de 
sua legislação a pena que ele impunha com tamanho arbítrio a três desgraçados a quem faltava 

instrução mais elementar, teria ouvido o poderoso agente da realeza metropolitana classificar 
como uma utopia dos sonhadores do século 18 esta brilhante conquista das nossas luzes. Os 
tempos vingam-se, e se a humanidade algumas vezes, como as aves, rasteja e se enloda nos 
charcos da terra, purifica-se como elas, nas chuvas celestes, e eleva-se a regiões sereníssimas 
donde vê a grandeza do Onipotente nos milhões de mundos que povoam a imensidade; a sua 
sabedoria na harmonia que os prende; a sua bondade no sem-número de leis, assim físicas, 

como 
morais, que protegem os corpos e dignificam os espíritos.

    Na hora em que se construía o cadafalso, uma mulher que representava cinqüenta, mas na 
realidade não tinha senão 36 anos de idade, pedia por tudo quanto há sagrado, a uma das 
sentinelas do palácio permissão para falar ao governador.

    Joana havia chegado de Santo Antão no dia anterior, e de noite soubera que o filho e o 
marido tinham sido condenados à morte. Não lhe permitiram ver os entes que pertenciam mais 

ela, representante do coração por dobrado direito, do que à justiça que nesse momento exprimia 
uma vontade poderosa e apaixonada.

    Pela manhã Joana correra ao palácio para cair aos pés de José César, e rogar-lhe que lhe 
deixasse ver o filho. A sentinela, em resposta, perguntara-lhe simplesmente:

- Quem é você para falar ao sr. governador ?

    - Sou a mãe do Cabeleira. Será possível que meu filho morra sem que eu o tenha visto antes 
?

    - Ponha-se no largo das Cinco Pontas, que o verá subir à forca à volta de uma hora da tarde.

    - Meu filho ! - gritara ela em soluço. - Pois hei de ver meu filho morrer na forca !

    Joana caíra com a face sobre a laje do pavimento, carpindo-como louca a sua desventura.

    Tendo ouvido os ais, lamentos, exclamações e gritos daquela consternada mãe, mandara 

José 
César inquirir a causa do alarido. Quando lhe disseram a desoladora verdade, ordenara que 
incontinenti a mãe infeliz fosse posta em custódia até que se cumprisse a execução.

Joana mal pudera ouvir a intimação deste cruel mandado.

    - Não, não ! - gritara, atirando-se para fora do palácio em estado de puro desespero.

    Alguns soldados correram a pegá-la, mas em vão, porque, empregando esforços sobre a 
natureza, pudera Joana escapar, não sem deixar primeiro despedaçados nas mãos de um o 

lençol 
em que estava envolta, nas de outro parte dos seus cabelos que haviam de todo 

embranquecido. 
Aquela pobre mulher fora condenada pela adversidade a padecer angustiados momentos, para 

os 
quais não acharemos semelhantes no catálogo das tragédias humanas.

    Ela fora pôr-se junto da masmorra, donde Cabeleira, Joaquim e Teodósio, que aí se achavam 
em grande recado, logo que houvessem recebido os confortos da religião, tinham de partir para 



[Linha 5550 de 5692 - Parte 4 de 4]


lugar do suplício.

    A esse tempo já as circunvizinhanças desse lugar se achavam ocupadas por grandes 

massas de 
povo.
    Quando no relógio da cadeia soou a hora fatal,; viu-se desfilar entre fortes colunas militares e 
a multidão os condenados. O silêncio e a tristeza que aumentam a solenidade destes 

espetáculos 
indescritíveis, eram de momento a momento perturbados pelos lamentos de Joana.

    - Meu filho vai morrer enforcado ! Ah ! meu Deus, vós bem sabeis que ele não teve culpa 
-dizia ela com a voz entrecortada de soluços.

    José César, cercado dos seus privados e lisonjeiros viu da varanda do palácio, outrora 
povoado pelo vulto homérico de Maurício de Nassau, tipo de mais fidalgo liberalismo que ainda 
transpôs aqueles umbrais, com uma espécie de recolhimento qual se estivesse presenciado 

uma 
procissão desfilar o fúnebre préstito, que em seu trajeto percorreu as ruas do Crespo, 

Queimado, 
Livramento, Direita, Pátio do Terço, e finalmente parou no largo das Cinco Pontas ao pé do 
terrível artefato. Era uma hora da tarde.

    O juiz nomeado pelo governador para assistir à execução em conformidade do disposto na 
provisão régia, ordenou que o escrivão repetisse a leitura da sentença. Os delinqüente. ouviram 
pela vigésima vez, com sincera contrição, esse padrão do absolutismo colonial.

    Finda a leitura, viu-se o Cabeleira aparecer, quase de súbito, no estrado da forca, ao lado do 
carrasco.

    Ele não havia vacilado na rápida ascensão nem dava mostras de abatido.

    Seu rosto estava pálido, mas sereno. A cabeça tinha despojada do belo distintivo a que o 
mancebo devia a alcunha com que seu nome chegou à posteridade.

    Com um olhar longo e rápido abrangeu a multidão que se apinhava em derredor do patíbulo, 
e proferi, sem titubear, com voz ligeiramente alterada, estas palavras que a tradição recebeu 

como 
herança, para transmitir às gerações vindouras:

    - Morro arrependido dos meus erros. Quando caí no poder da justiça, meu braço era já 
incapaz de matar, porque eu já tinha entrado no caminho do bem...

    - Meu filho ! meu filho ! - gritou nesse momento Joana do meio do povo por entre o qual 
buscava embalde abrir caminho para chegar ao pé do cadafalso.
    A esta exclamação, o Cabeleira voltou-se confuso e comovido. Um longo suspiro escapou-lhe 
do peito opresso da súbita aflição. Seus lábios trêmulos deixaram passar estas precisas e 

pontuais 
palavras:

- Adeus mamãezinha do meu coração !

    No mesmo instante, aos olhos da multidão profundamente abalada, a cena transformou-se 
como por oculto maquinismo. O infeliz mancebo, que, mal acabara de falar tinha sido rudemente 
impelido do estrado para o vácuo, pendia da corda assassina, tendo sobre os ombros o 

carrasco 
que apertava com as mãos cobardes o laço sufocante. Cena bárbara que enche de horror a 
humanidade, e cobre de vergonha e luto, como tantas outras, a história do período colonial !


[Linha 5600 de 5692 - Parte 4 de 4]



    No meio da multidão esta cena de morte reproduziu-se no mesmo instante, unicamente 
modificada na forma. Entre os braços de umas mulheres do povo, pobres mães decerto, Joana 
acabara de exalar o último suspiro. O coração tinha-se instantaneamente estalado de dor.
    Poucos momentos depois ao cadáver do Cabeleira reuniram-se os de Joaquim e Teodósio, 
seus companheiros na vida e na morte, na história da província e nas reminiscências do povo, 

-de 
presente quase de todo apagadas pela mão do tempo.

    A notícia de tão triste exemplo atravessou as remotas paragens onde repercutia a fama do 
grande matador, e passou ainda além nas asas ligeiras dos versos já citados, aos quais se 

devem 
reunir estes dois últimos, trovistas pernambucanos:

Quem tiver seus filhos
 Saiba-os ensinar;
Veja Cabeleira
Que vai a enforcar.

Adeus, ó cidade,
 Adeus, Santo Antão, 
Adeus, mamãezinha 
Do meu coração.

    A execução do Cabeleira e seus co-réus não atalhou as desordens e delitos, a que se refere a 
provisão; não trouxe terror nem emenda aos malfeitores.

    Os crimes atrozes, então muito freqüentes, se têm diminuído, ainda não cessaram de todo. As 
folhas públicas registram todos os dias por infelicidade nossa muitos deles, perpetrados no 

Norte, 
no Sul e na própria corte do Império.

    De que serviu pois a provisão régia ? Em que consistiu o proveito da execução dos três 
infelizes no regime colonial; e dos que os precederam, ou se lhes seguiram neste e no regime 

do 
Império ?

    Ah ! meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado não ser mais 

que 
um crime jurídico, de feito não corrige nem moraliza. O que ela faz é enegrecer os códigos que 
em suas páginas a estampam, por mais liberais e sábios que sejam como é o nosso; é abater o 
poder que a aplica; é escandalizar, consternar e envilecer as populações em cujo seio se 

efetua.

    A justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorância e na 
pobreza.
    Mas o responsável de males semelhantes não será primeiro que todos a sociedade que não 
cumpre o dever de difundir a instrução, fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da 
riqueza?

    Se a sociedade não tem em caso nenhum o direito de aplicar a pena de morte a ninguém, 
muito menos tem o de aplicá-la aos réus ignorantes e pobres, isto é, aqueles que cometem o 

delito 
sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade. O Cabeleira pode 
acaso comparar-se em culpabilidade a Lapomerais, médico ilustrado, ou a esse negociante 

alemão 
ou americano, Tomás ou Thompson, que, com intuito de enriquecer do dia para a noite, 

ocasionou 
com a perda do paquete Moselle a morte de oitenta, e os ferimentos de cem passageiros ?


[Linha 5650 de 5692 - Parte 4 de 4]



    Condena-se à forca o escravo que mata o senhor, sem se atender a que, rebaixado pela 
condição servil, paciente do açoite diário, coberto de andrajos, quase sempre faminto, 
sobrecarregado com trabalhos excessivos, semelhante criatura é mais própria para o cego 
instrumento do desespero, do que competente para o exercício da razão. Ainda em 28 de abril 

do 
corrente ano, em uma cidade da província das Alagoas um destes infelizes padeceu o suplício 
capital. Por honra da civilização, um dos primeiros órgãos da imprensa do Norte, o Diário de 
Pernambuco lavrou contra essa cobardia jurídica o seguinte protesto: "Registramos este 
acontecimento com a mágoa que sói causar àqueles que amam a pátria e a humanidade a 
continuação entre nós da bárbara pena de morte, que, infamando, nem ao menos corrige".

    Arrastam os delinqüente. à barra dos tribunais ou ao pé dos juízes para serem interrogados 
sobre as circunstâncias dos crimes que cometeram. Não devia ser assim. O interrogatório 

principal 
devia ter por objeto os precedentes do culpado, o grau da sua instrução literária, a sua 

educação, 
os seus teres.

    A pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve a sociedade atribuir o maior número dos 
crimes que pune e dos erros e faltas que não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca 

foi 
nem será jamais um elemento de elevação; ela foi e será sempre um elemento de degradação 
social.

A riqueza, meu amigo, é um dos primeiros bens da vida.

    Quando ela resulta de um trabalho honesto, e servido por uma ambição nobre e ponderada, 
não podem dela redundar males. Ao reverso, de uma riqueza assim adquirida, provém quase 
sempre benefícios não só para aquele que a possui, mas também para a sociedade.

    Quanto mais medito sobre este assunto, mais me parece que o evangelho que ensina a 

pobreza 
voluntária, considerada pela moderna ciência um absurdo econômico, e um impossível social, é 
antes um código de moral prática sujeito à revisão da sabedoria dos tempos, do que o corpo de 
leis de uma religião imutável. A prova de que não estou em erro, eu a vou achar no exemplo que 
nos dão os atuais ministros do evangelho, os quais, muito diferentes dos pescadores da 

Galiléia e 
da Samaria que, descalços e humildes, o ensinaram gratuitamente a todas as gentes, 

empregam 
hoje todos os meios de tornar-se ricos e poderosos, e não desestimam a opulência, começando 
pelos que ocupam os primeiros lugares na hierarquia eclesiástica.

Não sirvam estas verdades de consternação aos pobres.

    Sirvam-lhe de estímulo para que trabalhem, cultivem a terra, as indústrias, as artes, e possam, 
por seu próprio esforço, vir a ser independentes é felizes.
    

FIM - FIM - FIM

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